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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Ébria eternidade... continua 1

Por Julia Bussius, de Salvador, Bahia

Raul tinha agora 56 anos. O pai morrera, ldeixando o apartamento de Copacabana e um outro imóvel na Baixada. Com o dinheiro da venda do segundo imóvel, decidiu parar de trabalhar. Detestava o jornal, detestava fazer as notas. Não tinha amigos, mal falava com os poucos colegas do plantão da noite, para o qual passara, deixando as madrugadas livres. Cora havia sido sua última namorada.

Raul passara a sair todas as noites pelas ruas do bairro, a partir da meia-noite. Continuava só tendo coragem de atacar os embriagados. E não era mau. Passara a apreciar daquele doce sentimento ébrio, a risada fácil, uma certa leveza que havia perdido, o sono pesado quando raiava o dia e ele se recolhia ao quarto absolutamente escuro com cortinas blecaute.

Frequentava os bares da região, em busca de turistas embriagados – alemães e americanos robustos, com pescoços carnudos e sangue adocicado pelas inúmeras doses de cachaça e vodka. Também nos bares, aprendeu a beber direto da fonte: pedia uísque, duas pedras de gelo no copo alto, e via a noite passar, observando quem seria a vítima para o jantar. Sempre voltava para casa satisfeito. E bêbado.

A sisudez e a reserva de sua personalidade vampiresca deram lugar a certa sociabilidade maior, quando estava entre os boêmios. Tornou-se camarada dos garçons, que lhe serviam doses caprichadas e já o reconheciam como habitué. As moças, ali para trabalhar, também ofereciam seus serviços, que o fazia vacilar, ao ouvir o preço – tinha pouco dinheiro, não poderia gastar a herança depressa demais. Mas às vezes cedia, salivando diante dos pescoços esguios.

Uma ou outra prostituta lhe serviu de jantar.

Um jantar caro, no entanto, abandonou o hábito.

O aspecto de Raul permaneceu quase inalterado. Aos 56, tinha a mesma fisionomia dos 35. Ele desconfiava que a história de eternidade tinha algum fundamento, mas ainda assim lhe pareceu absurda demais. Ele notava que as mulheres o observam no bar. Olhares lânguidos, com uma ponta de súplica. Mesmo alguns homens pareciam interessados. Raul, porém, continuava a sentir-se pouco hábil nesse sentido. A história com Cora fora a prova disso. Todavia o uísque ajudaria a ficar mais desinibido; e ele passaria a arriscar algumas aproximações.

Descobriu que o movimento era mais fácil do que imaginava. Bastava um olhar direto nos olhos e poucas palavras. Pagava um drinque à moça, depois convidava para um passeio. Mas resistia a mordê-las. Continuava temendo o que podia acontecer a elas. Os bêbados não pareciam merecer sua consideração, de algum modo queriam esquecer, não estavam muito ligados à realidade. As saídas com as mulheres duravam uma noite apenas. Era sempre na casa delas e ele partia antes do amanhecer.

Lola apareceu numa noite de segunda-feira. Raul estava no bar de sempre, bebericando uísque, sentado à mesa de canto. Prospectava possíveis companhias ou fornecedores de sangue. Foi quando notou a mulher ruiva, cabelos volumosos e muito cacheados, no lado exatamente oposto ao seu. Usava batom vermelho carmim e vestia delicado vestido roxo, com um decote em "v" profundo, revelando parte dos seios perfeitos. Sua pele era de branco absoluto, sem qualquer mancha ou sinal. Não tinha nada de carioca, nada do jeito que as mulheres que ele costumava sair apresentavam. Olhava fixamente para ele. Uma hora levantou-se e foi até a mesa de Raul.

Há quanto tempo você está aqui?, ela disse. Há cerca de duas horas. No Rio, quero dizer, Lola retrucou. Ah, sim, a vida inteira. Nunca vivi em outro lugar. Lola o encarou em silêncio. Não parece, foi a resposta dela. Foi a vez dele perguntar de onde ela vinha. Ela tinha um leve sotaque estrangeiro, quase imperceptível. Sou húngara, estou no Brasil faz muito tempo. Quanto tempo?, ele disse. Muito tempo.

Quando você foi mordido? Ele congelou. A pergunta tinha a naturalidade absoluta. Desculpe?, Raul gaguejou. Eu disse: quando você foi mordido? Raul olhou nervosamente ao redor, para ver se alguém mais escutava a conversa. Lola continuava a encará-lo, à espera da resposta. Ele engoliu a seco, pigarreou. Faz mais de vinte anos, eu estava em Buenos Aires. Ao que Lola respondeu: eu imaginei que não tivesse sido aqui, vampiros costumam detestar o Rio. Uma vez mordidos, acabam deixando a cidade.

Raul não sabia o que dizer. Conhecia o estranho segredo dele. Entendeu a questão. Será que ela...

Continua

Lola, ruiva e perigosa...

Comentários (clique para comentar)

Carlos - 24/11/2009 (12:11)

Oi Júlia. O que é isso, está ensaiando um novo blockbuster? hehehe. Em épocas de livros e filmes de vampiros norte americanos, é bem legal ver histórias passadas por aqui, ainda mais com um vampiro carioca e bêbado... Um beijo. Carlos.

Daniela Brusco - 24/11/2009 (11:11)

quero mais....

Cornelia - 24/11/2009 (11:11)

Ju...está ficando muito interessante.