Foto do Hermógenes

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Ébria eternidade

Por Julia Bussius, de Salvador, Bahia

Raul despertava às seis e meia da tarde – exceto no período do horário de verão, quando se permitia uma hora a mais na cama, o tempo da claridade excessiva do sol a se esvair por completo.Vivia em Copacabana, no apartamento pertenceu a seus pais, à rua Silva Castro. O lugar era muito barulhento e dormia com tampões de ouvido durante o dia.

Trabalhava à noite, como plantonista do Diário, na seção policial. Mas não era repórter, apenas ficava na redação esperando pelas notícias sangrentas da madrugada, que reunia e redigia em pequenas notas. Não gostava daquele trabalho.

Ao deixar o jornal, às cinco da manhã, Raul voltava caminhando pelas ruas da orla. Ele cruzava com os bêbados do fim da noite, sobretudo no trecho da praia de Copacabana. Os boêmios embriagados eram presas fáceis, não ofereciam grande resistência e na maioria das vezes nem entendiam o que estava acontecendo.

Pois Raul precisava de sangue humano para viver. Porém era sujeito reservado e covarde demais para atacar pessoas sóbrias.

Detestava o Rio. Detestava a praia, o calor constante, aquele mar, e detestava todas aquelas pessoas saudáveis e bronzeadas passando pelo calçadão, tomando sucos naturais ou água de côco, os corpos suados e morenos sempre expostos, a necessidade de estar sob o sol. Há anos que ele não chegava perto da praia durante o dia. Aquela luz queimava seus olhos e feria sua pele muito pálida.

Mas Raul não foi sempre assim.

Foi mordido por acaso. Numa viagem a Buenos Aires, meio forçado por uma ex-namorada, certa noite fora arrastado para um canto escuro por certo sujeito sinistro, vestindo capa preta e chapéu – algo até comum na Argentina –, mas que ele tomou como estranheza. Era inverno, junho, e ele e Cora, a namorada, tiveram briga feia no quarto da pousada. Saiu para uma caminhada, tentando acalmar os ânimos. No momento do ataque, Raul sentiu uma forte pressão contra a sua jugular, como ferroada de abelha, e tentou esquivar-se do homem que julgou querer molestá-lo sexualmente, com aquele caloroso ataque a seu pescoço. Raul só lembrava de ter acordado numa sarjeta em San Telmo, quando o sol ficou mais forte, e sentir uma repulsa terrível por aquela claridade típica de um dia de céu azul indefectível. Arrastou-se pela calçada e logo sentiu a ferida no pescoço latejar. Com o dedo tocou dois furos perfeitos, paralelos.

Voltou ao Rio no dia seguinte, deixando Cora sozinha na Argentina. Logo veio a transformação: os caninos aos poucos ficavam mais incisivos, os olhos ganharam a cor diferente, acinzentada. Na época aos 35 anos, parecia rejuvenescido após o ataque. Antes ralos e opacos, os cabelos escuros tornaram-se sedosos e ondulados. A cútis ficara mais pálida. O Rio, lugar onde nasceu e passou toda a vida, de repente parecia insuportável. A mãe já havia falecido e o pai entrara numa depressão profunda apósa a perda. Agora vivia num lar para idosos. O contato entre ele e Raul era mínimo, um telefonema por mês, nenhuma visita.

Algum tempo depois, Cora cruzara seu caminho na Barata Ribeiro no começo da noite, quando ia para o trabalho. Mal o reconhecera. Ficou analisando seu rosto quando a cumprimentou. O que houve consigo?, perguntou. Respondeu que tinha achado melhor ir embora de Buenos Aires para não criar mais conflitos entre eles. Pediu desculpas por ter partido sem avisar.

Ela retrucou: Não, quero dizer o que houve com a sua aparência? Esse cabelo, os olhos diferentes. Escuta, você virou gay, Raul?

Não sabia o que responder. A probabilidade dela acreditar fora atacado por um vampiro e agora tinha se tornado um deles era nula. Achou melhor não dizer nada. Simplesmente balançou a cabeça, olhando para baixo, e tomou seu caminho.

Ele mesmo custava a acreditar naquilo. Tudo parecia muito improvável, coisa ilusória dos contos de terror. Mas os sinais eram evidentes. Os dentes, a palidez, a intolerância à luz do dia, a ausência de reflexo no espelho, a mudança de hábitos. E o desejo lancinante de absorver sangue humano. Os pescoços lhe pareciam suculentos. Pegava-se seguindo as pessoas pelas ruas. Entretanto na hora do ataque faltava-lhe coragem. Às vezes tentava substituir o sangue humano comendo sarapatel ou uma morcela crua, fresquíssima – mas o líquido vital suíno não satisfazia da mesma forma.

Não estava seguro do que aconteceria às pessoas. Poderiam morrer? Tornar-se-iam vampiros como ele? Apenas perderiam um pouco de sangue? Aquilo o afligia. A literatura sobre o assunto era enorme e pouco coerente. Cada obra citava características e efeitos diversos. Raul não sabia a quem perguntar. Não conhecia outros vampiros. Outro aspecto se repetia quase sempre nos livros e filmes era a questão da vida eterna. Porém isso não faria sentido, pensava. E tentava ignorar a questão...

Continua

Vampirismo tropical?

Comentários (clique para comentar)

CK - 23/11/2009 (11:11)

muito bem escrito...continua....

Cornelia - 23/11/2009 (10:11)

Juju...você é ótima!