Ano Novo
Alguns agrupamentos humanos por razões da extrema violência pela qual passaram, destituem o estado como elemento de segurança e refugiam-se em proteção mútua, dando valor a questões culturais e religiosas de forma mais intensa. Isto é especificamente marcante em povos perseguidos por razões religiosas. Judeus por exemplo.
Como certa reação, inclui-se a verificação nestes agrupamentos, assim escrevi, a religião e sua decorrente força cultural torna-se determinante.
É raríssimo entre judeus haver quem ignora por completo a questão religiosa e associada cultura. A fé comum mantém o grupo unido, nem aos mais céticos escapa não colocar à frente seus conceitos religioso-culturais, até como instrumento de crítica, a formidável ironia judaica. Compreensível, infelizmente menos, muito menos, para os adeptos das ditas grandes religiões. O inconformismo é complexo, não explicável.
Há pessoas 2.000 anos após a execução de Cristo ainda culpam a etnia coletivamente pelo ato. Ou discriminam e criticam a manutenção dos hábitos mais arraigados, complexos, distantes dos “ritos” plastificados pelas maiorias ocidentais. Em contrapartida, há o fechamento, o bloqueio e contra-discriminação. Seguido por sua vez de razões apresentadas da forma mais esdrúxula e sem nexo, ao não saber porque determinados hábitos tradicionais não são aceitos e mormente criticados.
”Não gosto de judeus” é recorrente. “Por que não gosta?”, fica em muitos casos sem explicação, pois de fato não sabem. Nem procuram saber.
Também pelo lado discriminado; lembro o avô de jovenzinho amigo de meu filho claramente não se alegrava com a presença de não judeus em seus ambientes mais íntimos. Das poucas vezes o vi, percebi a relutância em gestos simples, como o ato de cumprimentar. Seu filho, inicialmente liberal (aparentemente) cineasta e publicitário, fotógrafo talentoso, com o decorrer do tempo, apresenta a mesma discreta resistência aos não judeus, por fim explodindo em uma inexplicável grosseria imensa com minha companheira, por motivo irrelevante e notei adiante era apenas determinado corte, para nos distanciarmos todos de seu mundo tradicional ultra-semita.
Assim, enfim, se criam as barreiras.
Aos católicos ou budistas, evangélicos ou xintoístas, protestantes ou islâmicos não ocorre ainda posicionar-se adiante da questão geográfica, respeita-se em demasia a opressão do estado, com seus conceitos primitivos de patriotismo, honra, etc. Jamais se diz algo de brasileiro de fé judaica. Dizemos apenas algo de um “judeu”, sabedores ainda inconscientes que às etnias perseguidas, o estado se decompõe como proteção, a fé é a chave da união.
E tal mantêm-se, por anos, décadas e séculos.
Por estes dias participei de jantar de Ano Novo Judaico, na casa de bons amigos. Pessoas modernas, liberais, muito esclarecidas. Mantém a tradição, com ritos distantes, que não compreendemos na totalidade, talvez nem possamos. Sem a doentia plasticidade mecânica do Natal sintético, da Páscoa cujo simbolismo passa ser ovo de chocolate, do Ano Novo de troca de datas, fogos e calcinhas brancas.
Há certa curiosa estanqueidade, algum mistério envolvido.
Fiquei encantado com a força da memória, mantendo-se um ritual imutável: a formidável culinária! Há certos significantes fortes na relação do hábito da comemoração e os tipos de alimentos, que a senhora a nos convidar me explicou, assim como seu filho e nora.
A conformação do pão, para evitar arestas... a cabeça do peixe, pois as pessoas devem ser “cabeças” e não “corpos”; o pão ázimo, decorrente da fuga do povo pelo deserto, sem tempo de esperar levedar-se com plenitude, em bolas na sopa ou como flocos cozidos para acompanhar o delicioso carneiro. E por fim as sobremesas, imbatíveis. Com doces, para doces serem os períodos adiante com o novo ano que se inicia.
À mesa, linda; os homens com seus nobres solidéus, as mulheres em suas bonitas roupas. Encantador.
Observa-se, de sua peregrinação saindo da Palestina romana do século I, errantes e perseguidos, mantiveram sua fé, machista-monoteísta e rude como as demais, porém sempre sabedores outros, chamemos de irmãos ou primos, em algum momento difícil seriam solidários.
Por certo instante histórico penso sentiram-se mais seguros no centro da Europa, absorveram hábitos como percebi na essência do repasto com seus nomes, alguns em familiar alemão da idade média, até incluindo aqueles da discriminação, quando por exemplo judeus alemães não admitiam relacionar-se com judeus russos e poloneses (os Ostjuden, como diziam) por associá-los à falta de higiene e estranha ortodoxia, apostando até que o maluco Hitler levasse isto em consideração.
Mas bem enganados, o pior estava por vir....
Agradeço a D. Maria Gorski pelas deliciosas descrições da rica culinária judaica, que pouquíssimo conhecia.