La schiava
Talvez dos crimes mais antigos, de origens incertas pela distância cronológica, ser a escravidão. Até o século XIX era coisa de estado, regulamentada; e o Brasil dos últimos países (a Alemanha foi a última, por incrível parecer, em 1945) a abandonar oficialmente, com certo contra-gosto e pesado troco a quem promoveu a libertação, encerrando em parte o nefasto hábito. Aparentemente sem mais açoitamentos, trabalho interminável e torturante falta de perspectiva.
Brasil, terra de imigrantes, tem no negro parcela imensa da população, para cá trazida a contra-gosto, reativa até os dias de hoje ao passado de violências, miserável em média, ainda sem perspectivas, discriminada e escorraçada. Entretanto com discreta continuidade na opressão e discriminação, à brasileira, silenciosa, contornada.
Porém presente.
Até hoje: basta ir a clube paulistano qualquer, os irmãos de pele escura operam a faxina, nem garçons são, por ainda associados à imundície, quando o feitor não permitia o banho, a não perder-se tempo.
Durante o regime nazista a indústria alemã, sem contestações, utilizou-se de mão de obra escrava fornecida pelo estado, sob os mais nefastos argumentos, como serem apenas "prisioneiros russos sem a proteção da convenção de Genebra"; ou simplesmente "judeus, ciganos, homossexuais, opositores, testemunhas de Jeová" e todos os demais a contrariar certa Weltanschauung do maluco Adolf e seus milhões de seguidores.
Em meados do século XX, no seio do povo a gerar Goethe, Marx, Leibnitz, Bismarck, Rosa von Luxemburg e outros expoentes. O russo e o judeu eram sub-raças existentes para servir; ou morrer. Humanos incompletos, como tidos aqui os negros. O peso da Kultur e por cá do assistencialista catolicismo porém não obrigava a nada, balbuciavam-se bobagens de questões econômicas e o trabalho escravo era visto com naturalidade.
Lembro porém de fotos onde prisioneiros russos eram trazidos para remover cadáveres de civis alemães nos bombardeios ingleses, lado a lado com outros alemães, em cenário suavemente ventilava certa aproximação no que faz séculos negamos: somos todos humanos, com nossos sentimentos tão similares, independentes de castas, postos, religiões ou valores.
Seja na Alemanha dos anos 1936-1945 ou no nosso Brasil até 1888.
E sobre isto quero escrever.
Conheço certa senhora negra, advogada e cuja história me fascina pela complexa relação desenvolveu em seu crescimento de menina a mulher, entre aqueles cujo contato com o negro em pleno século XX, por até inegáveis discretos laços sanguíneos, coloca os seres humanos como estas criaturas de difícil compreensão em seus aspectos emocionais e sociais.
Contou-me ela, ainda menina, sua mãe em vista de dificuldades em criar a si e a irmã, entrega-a como espécie de ajudante no trato cotidiano, para família de alguma projeção no interior da Bahia. Aparentemente com a idéia que, nesta escolha de Sofia, a mais forte e capaz, talvez ela, obtivesse a chance negada à maioria dos negros, índios e mulatos: educação e bom emprego.
De fato ocorreu, mérito de sua aguçada inteligência e algum incentivo da família por onde cresceu, como, lamento escrever: jovem lacaia.
Com fortes laços afetivos até a presente data, citada ser filha de "criação", este original termo luso-brasileiro. Porém com detalhes, em conversa mais longa e com sua anônima autorização aqui repasso.
Tinha um seu quarto. Todavia quando havia visitas, pedia-se desocupar, a ceder o local. Normalmente acompanhava as refeições, entretanto, em dia de visitas, não. Ficava pela cozinha. A ajudar.
Lia histórias para os "irmãos" de criação, ninando. Auxiliava na arrumação e ia à escola pública, como incentivo, ao contrário da irmã, que então menos via.
Por anos: da infância à adolescência, destas ao casamento, faculdade pública, concurso e ingresso na carreira do grande banco estatal, o qual discretamente só discrimina a partir de cargos de diretoria; jamais houve um presidente negro.
Nem no banco, nem na nação.
Ousei levar a conversa adiante e, esclarecida é, perguntei se em algum momento soube serem suas condições tecnicamente as de uma escrava, pois jamais, em todos os anos de histórias para os pequenos e ajuda a pôr mesa e retirar, lavar pratos, com as empregadas pagas da casa, haver recebido um único centavo.
Sim, não seria ignorante a este ponto; mas pelos bons tratos e afinidade com a família, com a qual convive até os dias de hoje, não haver mágoas. De nenhuma espécie, apesar de certa tristeza quando pensa na irmã empregada doméstica com direito a morada em periferia de cidade grande, no Sul. E na mãe; em determinado momento, de fato, a entregá-la para "criação", sem dúvida aqui o enigma da questão, e sua labuta gratuita nos "pequenos serviços" pela casa. Sem jamais alguém imaginar remunerar os préstimos.
Restolhos de um sistema escravocrata até aos bem-intencionados sucessores deixou mazelas, entrelaçadas com algo penso chamar-se-ia hábito.
Ainda existe, em outras situações por este mundo afora. Casos violentos, como jovens russas, romenas, ucranianas e turcas prostituídas à força, vendidas para a Europa. Cortadores de cana brasileiros enganados por gatos (os arregimentam e vendem os serviços a fazendeiros, alguns agradecem por pelo menos haver o que comer), com débitos sempre maiores que os créditos salariais. Crianças chinesas em jornadas de 14 horas montando bicicletas, apenas com direito às refeições, como "ajudantes" para os pais, empregados.
E os milhares de irmãos e irmãs de "criação", com suas "pequenas ajudas no dia-a-dia", a custo zero, em toda América Latina.
Das muitas coisa que aprendi de um pai que passou pelas agruras de regime assassino-autoritário, era de seu parcimonioso apego à remuneração correta e pontual. Orgulhava-se de manter os pagamentos sempre acima do que o mercado oferecia e a pagar com rigidez cronológica suíça. Dizia: "... e nada receber de graça meu filho, a não ser o afeto."
Assumimos hábitos, claro, 30 anos após sua morte mantive o trato não escrito, em seu modesto empreendimento.
Todavia ainda há escravos. E às vezes não nos reconhecemos como senhores.
Somos assim.