O horário de Deus
Por Ildásio Tavares, de Salvador
Em um dos livros mais famosos da humanidade, O Leviatã, Thomas Hobbes, define o Estado de Natureza como hostil, cruel, impiedoso. O homem só seria capaz de sobreviver; de se auto-determinar, libertando-se da Natureza. Ou, de algum modo, adquirindo domínio sobre ela.
O ser humano, de todos os animais o único que precisa de roupas para enfrentar o frio; o único que não possui garras para o ataque nem, como os pássaros, asas para voar. Inerme, indefeso, fraco, porém possui o polegar oposto aos outros dedos e um cérebro maquiavélico. Graças a isso, foi vencendo, pouco a pouco, sua luta contra a Natureza e, com freqüência sofrendo as conseqüências de sua ação agressora. O Deserto do Saara já foi uma rica floresta.
Mais ainda, Claude Levi-Strauss diz que o ser humano é o único animal que tem uma querela com a realidade. Os outros se adaptam.
Milan Kundera sustenta que o homem fez um pacto mefistofélico para dominar a Natureza, vendo na proliferação desenfreada da indústria este aspecto satânico aterrador que ameaça o planeta.
Fritjof Capra no seu admirável livro O Ponto de Mutação estuda de forma vertical as implicações da dialética tecnologia x vida humana, para aportar uma série de dados reveladores sobre a verdade antropológica, política e científica, elaborando em termos do custo social, um viés muito além das relações custo/receita, ou dos condicionamentos éticos que regessem o lucro, um pouco além da teorização marxista.
Em 1969 eu havia marcado um encontro com Civa e Cibele do Quarteto em Cy numa larguíssima avenida de Los Angeles. Esta cidade tem a maior concentração de automóveis do mundo 4 carros por pessoa, então...
Eu estava de um lado da avenida e não enxergava o outro direito; nem se elas estavam lá. Quando divisei dois vultos gritantes. Eram elas. Imersas no smog, cortina nevoenta de poluição. Fiquei apavorado. "Será que isso algum dia vai lá para minha Bahia azul?" Quando cheguei logo escrevi uma crônica precoce para a Tribuna da Bahia, Polucionária em paródia à Primeira Catilinária, de Cícero: "Até quando ó Poluição abusarás da nossa paciência..."
Em 1991, coordenei um seminário, O Socialismo do Futuro , em conjunto com algumas gradas pessoas da área socialista, ainda hoje atuantes, como Lídice da Mata, Jaques Wagner, Domingos Leonelli, Roberto Freire, Paulo Fábio. As mesas tinham nomes cheios de humor. Coordenei uma mesa, o Desastre de Flash Gordon, com José Maria Wisnik, Gilberto Gil, Durval Olivieri, Amilcar Baiardi em que se discutiu essa dialética do lucro financeiro em confronto com o lucro social. Alguns tópicos desta mesa:
A desordem do progresso.
Custo ambiental x dívida social.
Os limites da ciência e da técnica.
E eu aditaria: Os limites do capital. Como o fuso horário, por exemplo:
No afã luciferino de dominar a natureza, o homem não pode parar o sol como fez Josué ante as paredes de Jericó, mas pode adiantar o relógio e contrariar o tempo natural a serviço do lucro, indiferente aos prejuízos; ao perigo das manhãs escuras, ao transtorno do biorritmo humano. Os animais não têm relógio nem a maré.
Vão na onda do sol.