Um vôo
Disseram ser temeroso àquela altura decolar e tentar deslocar-se por mais de 200 km. Já era tarde, o céu povoado de volumosos cúmulos, carregados de chuvas. Dia quente, no solo a temperatura por volta de níveis insuportáveis. Deu a volta em seu novo pássaro, de tantos e tantos rands, consumidas suas reservas e um pouco mais.
Era necessário, sabia ser. Decidiu-se, informou ao chefe de decolagens; que balançou a cabeça. Nada podia fazer; a decisão seria do piloto. Arrumou-se na pequena cabine, atou o pára-quedas que se fazia de encosto. Ajustou os cintos. Calibrou o altímetro com a pressão informada. Girou os botões para acertar a freqüência do destino e entre aeronaves. Ligou o GPS, posicionou o microfone, testou os comandos, trancou-se com a cúpula de transparente acrílico.
As imensas asas do planador, uma ao solo, aparentavam tensão a aguardar a ordem de empurrar-se o troço para a pista, engatar a corda de reboque e a um comando seguir puxado pelo potente aviãozinho a levá-los, piloto e pássaro, para a altura onde se entregariam às térmicas. A certo aceno foi posicionado por três companheiros ao centro da pista. Corda testada e engatada; o dos que correriam ao lado até o planeio iniciar-se levantou sua asa esquerda.
Último momento decisório: mostrou o polegar teso. Restos da areia do deserto sobre a pista de asfalto foram assopradas contra o plexiglass. Iniciou-se o movimento e a corrida do amigo. Largou a asa, equilibrava-se. Após 100 metros descolou do chão, um metro acima do solo, seguindo o rebocador.
Quando ambos voavam, seguiram em direção de alguns pequenos cúmulos ao sul do campo, sentido os solavancos das correntes verticais. Sem mais tempo a perder, por volta dos 450 metros, puxou a alavanca amarela a desconectar a corda e, em curva à esquerda, solto, seguiu rodando dentro de uma térmica até a base das nuvens.
Em 1.500 metros procurou a maior, enegrecido e ameaçador “cumulus-nimbus”, com seu topo em forma de bigorna, já se esvaindo na estratosfera. No rádio ouviu do campo a recomendação para afastar-se.
Nada fez. Iniciou o giro na corrente a sugar para dentro do gigante, com seus 15 metros por segundo na vertical. Fixou a visão no horizonte artificial e no coordenador de curvas. Em instantes estaria dentro da nuvem, já a quase 50 quilômetros do campo.
Ao redor o vapor úmido e escuro da nuvem, girando em curvas de solavancos. As asas de fibra-de-vidro balançando ameaçadoramente. Em 2.000 metros com a mão esquerda puxou a máscara do oxigênio, deixando-a preparada, em 3.000 liberaria alguns litros por minuto. Tinha que fixar-se no lado da imensa nuvem por onde tudo ascendia, a velocidade desenfreada, observando no variômetro a constância.
Quase noite no escuro do interior da nuvem, acendeu o pequeno farolete travando entre a mão e o manche, perscrutando os instrumentos para manter-se nivelado em suave curva ascendente. 3.500 metros.
Mais oxigênio. Olhava as asas com o facho, a verificar gelo. Pouquíssimo se formando no bordo de ataque, porém não atrapalharia a subida desenfreada. Lembrou do piloto de parapente , esse havia inadvertidamente entrado num gigante destes e desmaiado, levado a 9.000 metros, morrendo congelado sem ar respirável. Não seria o caso.
O grosso casaco estava lhe dando alento. O oxigênio a deixar atento.
5.000 metros. No rádio alguém querendo saber onde estava. Disse estar indo em direção ao destino. Se tudo bem? Apenas lacônico “roger” e seguiu a chacoalhante subida. Mais gelo, porém seguros 12 metros por segundo no variômetro, a nuvem ainda escura. Um pouco de gelo a pipocar contra o capuz de plástico, ecoando pela fuselagem.
Em pouco estaria escuro no solo, alguma luminosidade restaria no topo da nuvem, se chegasse vivo. Aumentou a velocidade para 120 km/h, a ver se deslocava algum gelo das asas; começavam a engrossar o perfil. A luminosidade lentamente a aumentar. 7.500 metros. Frio terrível, a tensão era sobrepujada pela diminuta temperatura.
O GPS mostrava mesmo girando dentro da monstruosa nuvem havia se deslocado mais 15 quilômetros em direção do desejado. 8.000 metros, oxigênio a plena vazão procurou as luvas. Clareava, a velocidade vertical diminuindo a quase zero, o gelo das asas havia sumido.
De repente o céu azul, escuro, como é em grandes altitudes. Havia vencido o gigante e seus 8.500 metros. Terminou o giro, enquanto tirava do bolso do casaco o papelzinho entregue pelo médico no hospital da Cidade do Cabo. Positivo após longos exames laboratoriais. O temor havia se confirmado.
Puxou a pequena janela embutida no capuz e o vento gelado instalou-se por segundos ao seu redor. Amassou o papel e atirou-o contra a nuvem.
Que saberia o que fazer com ele, o diagnóstico de progressiva esclerose múltipla. Por ele, o piloto, já estava resolvido. Aprumou em direção reversa às distantes luzes da cidade e, em seu último planeio, seguiu deserto adentro, ao escuro. Ajustou a partida do motoreco auxiliar, escamoteável, rotação suficiente para mantê-lo na altura adequada: certa de voar, ruim de respirar. O suave tuc-tuc acompanhou sua paz, vencida a nuvem. Desligou rádio e GPS, reclinou-se; algumas estrelas já brilhavam. Fechou o oxigênio.
O ar da noite é o mais tranqüilo.