Entenda como o efeito rickshaw impacta a vida do estrangeiro residente na Índia
Por Mariana Oliveira, Gurgaon, Índia
Ainda tentando entender o ambiente corporativo na Índia e como este estava afetando o nosso trabalho e a nossa maneira de perceber as coisas, eu e meus colegas que vieram do Chile comigo, começamos a elaborar algumas teorias a respeito.
Vocês já repararam que os papos filosóficos normalmente surgem em uma mesa de bar? Após algumas cervejas depois do trabalho aqui em Gurgaon, começamos a tentar entender como a Índia tinha mudado a maneira como enxergávamos as coisas que passavam ao nosso redor.
Para entender melhor sobre o que estou falando, vou fazer uso de algumas metáforas que tem tudo a ver com a Índia. Assim como o Lula, às vezes considero a metáfora um dos melhores recursos para transmitir uma mensagem de forma simples e clara. A metáfora nos leva direto à essência, o que nos possibilita fazer relações com fatos que acontecem na vida de cada um de nós.
A idéia aqui é relacionar o trabalho na Índia com fatos que acontecem no cotidiano de provavelmente todos os estrangeiros que vivem no subcontinente indiano. As metáforas que serão utilizadas neste post têm a ver com um dos meios de transporte mais comuns na vida de um estrangeiro na Índia: o rickshaw.
Nada melhor que relacionar como o efeito riquixá muda nossa percepção de risco, medo e reação. Mas o que é o efeito Rickshaw? O efeito riquixá nada mais é que a perda da noção de perigo. Você ê percebe que está sob o efeito riquixá quando uma situação que antes parecia de alto risco passa a ser vista com outros olhos. Com olhos extremamente ingênuos e otimistas, de quem acha que no final das contas tudo acaba bem. Os indianos de uma forma geral vivem sob este efeito. Parece que nem os estrangeiros residentes na Índia conseguem escapar dele e vou explicar agora de que maneira isto acontece.
Para quem não sabe, o riquixá é um dos meios de locomoção mais comuns na Índia e pode ser encontrado em minúsculos vilarejos até em grandes cidades, como Delhi e Mumbai. Você encontra tanto a versão bicicleta (primeira foto ao lado) quanto o auto-riquixá (segunda foto). Mas, sem dúvida alguma, o riquixá bicicleta é de longe uma experiência bem mais emocionante.
Me lembro bem da minha primeira vez em um riquixá. Foi no meu segundo dia na Índia. Meu chefe, a Helen e eu fomos almoçar no shopping aqui de Gurgaon. Achei aquilo uma loucura, o indiano que estava dirigindo simplesmente atravessou a rua sem olhar e se jogou na avenida, em pleno movimento de carros em alta velocidade. E na verdade não existe uma pista só para riquixás, então o cara pedala ao estilo “Flinstones” na mesma pista que um carro em alta velocidade. Eu pensei comigo mesma: “Isso só pode dar errado”. Só sei que gritamos o caminho inteiro achando que iríamos ser atropeladas a cada minuto quando víamos um carro passando de raspão. Quase xingamos o nosso chefe que estava no outro riquixá: “Você é um louco, acabamos de chegar e você quer ver a gente morrer aqui? “. Naquele dia eu jurei para mim mesma, que era a última vez que andaria em um riquixá. Aquilo simplesmente parecia perigoso demais. E ele só ria da gente; e só falava que logo mais a gente iria se acostumar.
E estava certo. Os estrangeiros acabam se acostumando, eu me acostumei. Às primeiras vezes pode ser um pouco traumático, é quase como se você estivesse em um videogame. A grande diferença é que em um videogame por mais que você tenha chances de se dar mal no jogo, no fundo sabe que não vai se machucar. Afinal é apenas um jogo. O riquixá é um videogame na vida real.
Mas por algum motivo inexplicável, aquele medo inicial acaba desaparecendo depois de um tempo. E ai você se vê quase que indiferente ao que se passa no trânsito caótico da Índia. Não importa se tem um caminhão vindo na contramão na direção do riquixá ao mesmo tempo em que você quase leva uma chifrada de um boi no meio da rua. Não importa se o riquixá está na contramão, no meio de uma rua extremamente movimentada. Não importa. Alguma coisa aconteceu no meio do caminho que fez com que minha noção de perigo mudasse: do pânico inicial para uma completa abstração.
Outro dia, por exemplo, tive um pequeno acidente em um riquixá e me surpreendi com a minha própria reação. Estava indo para a academia por um caminho alternativo, por umas ruelas de terra super esburacadas. Quando o riquixá fez uma curva com um pouco mais de velocidade, uma das rodas ficou presa no buraco fazendo com que inclinasse para esquerda, como se realmente fosse cair. Na hora, pulei do troço ainda em movimento e o cara que dirigia fez o mesmo, e segurou o veículo para que este não caísse. Meu coração batia forte. Afinal não é todo dia que este tipo de coisa acontece e nesse dia voltei a me dar conta que o riquixá não é invencível, que nem sempre tudo acaba bem. Enquanto meu coração batia, o motorista ria da situação. Enquanto uns se “ferram”, outros se divertem. Assim é a vida na Índia.
Pensei por 2 segundos se deveria subir no riquixá depois do que tinha acontecido. E subi. Os milhares de deuses hindus estão protegendo. Sabiam que, de todas as cinco maiores religiões do mundo em número de fiéis, o hinduísmo é a única crença com características politeístas? Agora entendo o porquê, um só deus não daria conta de cuidar de mais de um bilhão de indianos andando em riquixás por ai. Sem dúvida alguma, os deuses Ganesh, Vishnu, Shiva entre tantos outros tomam conta dos indianos e estrangeiros que vivem neste país.
Agora volto ao começo do texto, quando mencionei que iria relacionar o efeito riquixá com o dia-a-dia de trabalho na Índia. Pelo que percebi nestes quatro meses de trabalho, foi que o efeito também está presente no mundo corporativo e afeta a maneira como as pessoas percebem situações de risco. Sem entrar em muitos detalhes, nos deparamos com um projeto extremamente problemático no trabalho. Um projeto que desde o início já mostrava sinais claros de um desastre iminente caso nada fosse feito para reverter a situação.
Porém parecia que todo mundo ali estava sob o efeito riquixá, ou seja, ninguém mais percebia o caos, o risco. Ao invés do caminhão na contramão, nos deparávamos com prazos impossíveis de cumprir, ao invés de vacas no meio do caminho, nos deparávamos com a falta de comunicação clara entre os envolvidos. O projeto, na verdade, tinha se transformado no próprio riquixá. Andava a 5 km por hora em uma avenida que, na verdade, exigia uma velocidade de no mínimo 70 km por hora. E o pior de tudo é que por mais que você aponte o problema, você continua sentada em um riquixá, que não tem recursos para andar mais rápido em uma avenida cheia de buracos, pedras e elefantes. E de novo alguma coisa aconteceu no meio do caminho que fez com que minha noção de perigo mudasse: do pânico inicial para uma completa abstração. Mas no final tudo acaba bem certo? Talvez sim, talvez não. Ando questionando a invencibilidade do riquixá depois daquele pequeno acidente que sofri naquele dia.
Só espero que os deuses indianos protejam não só os indianos em seus curiosos veículos, mas também o mundo dos negócios aqui na Índia.
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