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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Fazenda São Bento e Big Boy

Aqui estou, após 26 anos, pela mesma época do ano na fazendinha que num ato da mais impensada e inconsciente atitude, em fevereiro de 1983 comprei. Burrice da grossa, mas com um dinheirinho obtido e sobrado na época (foi bom ano apesar das épocas de ditadura militar, já findando), achei interessante negócio. Nunca fiz um tostão com a coisa, pelo contrário, mas tive alguns anos de equilíbrio graças à parcimoniosa administração de um prático sócio em gado. Recentemente investiu-se um pouco e lá vai despesa. Voltou o arrependimento, forte.

Nesta Semana Santa decidi curtir um pouco, após tantos anos, a "propriedade", como denominam aqui, mas sem o ritmo alucinante que normalmente impõe o sócio trabalhador. Comprei um gordo ventilador, geladeira espaçosa (olha a despesa...), filtro de três velas, facão e vinte metros de corda (não sei para qual uso, entretanto meu falecido sogro dizia ser indispensável...) pedimos um bocado de lenha ao vaqueiro que aqui mora, e nos abastecemos de muita água e refrigerante. Carne de sol excelente e outra, horripilante, temperada com cominho e abacaxi; entretanto sempre a elogiar, ninguém é besta.

Não fui à empreitada equestre, a ver capins e gado; na verdade me apresentaram uma mula mal-encarada, com uma sela que me amassaria as partes e pelo sol que aqui faz, com os carrapatos micuins já lambendo os beiços para se atracarem na pele delgada do filho de imigrante, com as coceiras infindáveis semanas após, fiquei pela "sede" (sim, em aspas mesmo, pois na verdade é um depósito de agora inexistente cacau, a casa do vaqueiro e um pequeno apartamento, recém constituido pela companheira arquiteta). Confortável com detalhes pensados.

Excetuado o banheiro, o calcanhar de Aquiles na arquitetura da minha esposa. Excelente o tamanho para um barco de 40 pés, todavia pouco generoso para uma área de milhões de metros quadrados... não se impressionem, não é muita coisa para fazendas. Mas patroa não gosta de (ou admite) banheiros espaçosos, uma risonha sobra de conflitante socialismo herdado do pai. Sempre acanhados, privada quase dentro do box e com, curioso, indiscretas grandes janelas. Bom para observar a região, mas olha-se de fora para dentro, também. E onde mais se precisa dos ditos, em fazenda e casa de praia, o tamanho se reduz, proporcionalmente. Não dá muita importância ao locus, como diziam os romanos. Já eu...

E dei minhas caminhadas, empastelado com repelentes de insetos. Por enquanto nenhum carrapato. (Sofri demais com esta turma.) Num outono dos mais quentes que já senti por esta velha Bahia. Não acreditava muito no tal global warming, o aquecimento do planeta de que falam, mas que está mais quente está. No creo en brujas pero que las hay, las hay... Aqui, pelo que me parece, bem mais quente. O clima, não a bruxa.

Felizmente (ou infelizmente) o celular recebe e faz ligações. O incerto relativo isolamente, portanto, ainda não atingível. Mas para enfurnar-se e escrever uma tese ou outro livro sujo, bom lugar, bom lugar...

Há pouco reuniram o gado todo, para contagem e outras verificações. As fazendas são Auschwitzes bovinos, morro de pena e admiro os indianos, séculos à nossa frente, que simplesmente respeitam o animal, deixando-o livre. E me vejo como desprezível empresário fascista, a viver da morte destes imensos indivíduos, marchando solenes pelos pastos, sob sol de matar, tataranetos de gados trazidos em veleiros, filhos de ex-patriados voluntários e involuntários, como eu. Engordando para ir ao abate e virar filé de madame, o vegetarianismo tem me atraido, quem sabe... Agora mesmo, estóicos, no apertado curral em um sol de 35 graus, sem água, aguardam ser, quem sabe, marcados a ferro e fogo, tomar umas agulhadas para a tal aftosa.

Penso que a médio prazo é tempo de transformar isto aqui em área de preservação, a gerar os ditos créditos de carbono, a replantar espécies da mata nativa (já temos mais de 30% em matas recompostas de roças de cacau abandonadas), bem cercada com alguma proteção e vigilância ou aliada de alguma fruticultura autosustentável, e de espécies também nativas, participando da preservação. Mas sem os pobres animais de longínquas Índias e a monocultura de capins africanos, hipermanipulados para o máximo crescimento e engorda do rebanho. A natureza é extremamente pródiga e resistente por estas bandas latinoamericanas, apesar de estarmos com ajuda de nosso senhores políticos e a bancada ruralista nos esforçando ao máximo para destruir tudo, com monoculturas após queimadas. No sul e sudeste já conseguimos, no centro-oeste e parte da Amazonia o ritmo é louvável, estima-se que assim mantido, em 50 anos aquele mato nojento acabe de vez, dando lugar à cana, milho, soja e pecuária.

Talvez esta fazendinha aqui possa ser um pequeno exemplo de preservação. Na contra-mão da destruição admitida e geral...

E por que Big Boy? Bem, nessa vida observamos uns e outros (e pouco observamos a nos mesmos). Esta convivência de alguns dias com o sócio tem me mostrado isto. Pessoa boníssima, hoje já homem maduro, de meia-idade como se diz, quando longe das vistas da censura, sociedade e circunstantes, se torna um grande menino. Ri, faz palhaçada, conta casos, rola pelo chão, literalmente, cozinha como moleque traquina, bagunça tudo, pede coisas e convive com a entourage à maneira de um mimado menino de engenho. Ontem para assar uns pedaços de carne, usou praticamente todos os pratos da casa, garfos e facas. Botas pelo meio da casa, banheiro inundado e por aí vai. Dormindo pelas sete e meia, exausto das estrepolias. Invejável.

Big Boy. Fator que me orgulha, pois é sinal que "tem intimidade", como dizem por aqui.

Uma esposa mandaria para o inferno; penso para uma mulher pouco dada aos machismos de outrora uma vida impensável. O que se estimava; e ocorreu... É separado.

Somos assim.

O país é dividido em cercas e cancelas, o sonho europeu de um "pedaço de terra" fez escola por aqui e retalhamos a geografia.

A cozinha rural, das mais autênticas, e imundas, não poderia deixar de existir. Porém com pratos deliciosos. Esta a de D. Cleonice, lá na fazenda São Bento.

São Bento. Carreguei este sujeito para lá em 1984, presente de um fabricante de santos em Sumpa. Em gesso, no avião, segurei no colo, com a careca espiando da malinha. A senhora ao lado olhou e disse: "Padre, posso lhe falar?"

Comentários (clique para comentar)

Anonymus - 14/04/2009 (07:04)

Enquanto nos submetermos à ordem determinada por políticos, sem ao menos voto livre implantado (o nosso é obrigatório, com chantagem a bloquear direitos constitucionais de ir e vir, por exemplo), de fato tem razão o amigo: ainda é ditadura. Não do proletariado, pois não é chegado a excessos. Nem da pastoreada classe média. É a ditadura do funcionalismo público, mancomunada pela corrupção a grandes "empreendedores", sempre políticos. A retirar de muitos, com leis e decretos o muito que desejam. Veja a CONTROLAR com a obrigatoriedade do exame antipoluição em Sumpa, os pedágios caríssimos, os ajustes entre concorrentes nas tarifas aéreas e por aí vai.

Luiz Alvaro - 14/04/2009 (07:04)

VOCE DIZ DITADURA MILITAR ? A ATUAL COMO CHAMA ? LUDWIG VON ALBARUS

Ildásio Teixeira - 13/04/2009 (17:04)

Deliciosa, sua crônica -- visual, dava pra gente espiar as coisas. Aparte, o charme do cacau em Sampa. mas sempre ager clamat

Thomas - 13/04/2009 (09:04)

Usava uma barba na época e, notoriamente mal-vestido, até hoje, acho que a tiazinha se convenceu sem perguntar. O santo denunciava o que não era fato. E de padre a fradinho, são léguas... léguas morais...

- 13/04/2009 (09:04)

Uma vez Fradinho, sempre Fradinho... Não sabia desta. Confezzionárrio na avion.

- 12/04/2009 (08:04)

300 hectares, por volta disto. Ao amigo um excelente domingo de Páscoa, com um bom cozido à portuguesa e moderação no vinho. A si e a todos os seus. Th.

António Gomes André - 11/04/2009 (12:04)

Thomas, quantos hectares tem a fazenda ? Nota: Desejo-lhe para si e para todos os seus uma óptima Páscoa.