Brincadeira extrema
Sujeito formidável que conheço lá das plagas de Ipiaú, na velha Bahia, me contou caso, se verdade for, chamaria de brincadeira extrema. Na verdade até, digamos, bizarra coincidência, mas sobre qual me alongo depois.
Narra o amigo ter sido passado história a ele, um colega de infância, hoje veterinário e inspetor de higiene de algum destes ministérios, de tempos em tempos pedir carona em monomotor de também colega de infância. A voarem para o interior, um à sua fazenda levando o outro para trabalhos oficiais; caronas enfim. Conhecidos; amigos.
Diante da intimidade de muitos anos, o tal inspetor aparentemente em dificuldades de adaptação com a rápida mudança de pressão na decolagem e subida, iniciou aquilo em engenharia chamam de equalização de pressão. Sem pudores, íntimo.
Ou seja, se a pressão externa diminui com a altitude, a interna tende a igualar-se. Pressão nos ouvidos ou algumas emanações, discretas, re-equilibram o sistema. Mas o inspetor exagerava nos anseios e na diminuta cabine a fedentina tornava-se intolerável. Avião velho, ventilação deficiente. Não colabora quem detona metanadas em tão exíguo espaço.
Mas, amigo, não ligou. O outro, piloto, várias vezes pediu se abstivesse, tornava o vôo desagradável. Porém, traquina, mesmo em seus cinqüenta e tantos anos, esmerou-se nas expulsões de gases, a empestear o pequeno monomotor. Rindo-se.
Jurou vingança o piloto. Em novo trajeto para o interior, pedida e concedida a carona, decolaram. Nível de vôo certo, rádios e transponder em ordem, GPS indicando faltarem algumas milhas para o destino, tudo no automático. De repente, o piloto despenca para o lado, com a cabeça encostada ao vidro lateral, mão direita no peito e diz: “Enfartando...”.
Faz barulhos, produz espumas na boca e simula desmaio.
O veterinário em pânico pede pelo amor de Deus o sujeito recobrar-se, ser ele jovem para morrer, alguém ajude, dá tapinhas no rosto do piloto, chacoalha o amigo. Este, discretamente, desliga o piloto automático e produz solavanco no manche.
É demais para o veterinário. Começa a gritar, rezar, o que for. Em pânico real.
Vendo ser momento de parar com a brincadeira, o piloto retoma sua função, diz para o outro se acalmar e pousa o avião. O pobre veterinário ao chegar em terra, despencando-se para fora da aeronave, ajoelha-se e, fôlego recobrado, pergunta ao piloto por que tal tinha feito. Este lembrou dos tantos pedidos declamados, a solicitar o amigo não mais gaseificar o ambiente, fetidamente. Pediu desculpas o veterinário e foi a algum hangar recompor-se.
O piloto ainda observou as calças do homem estarem totalmente molhadas. Descontrole de pânico, deixa suas marcas. Mijou-se todo.
Rimos sobre o assunto, meu amigo e eu.
Casos de Ipiaú.
Mas, coincidentemente, tomando meus goles e fumando um cigarrinho pouco antes deste ligar, estava a imaginar em último passeio de monomotor feito como convidado, há poucos meses, como reagiria numa situação destas.
Não piloto há 27 anos, saberia pousar? Lembraria de todos os detalhes: flapes, trem-de-pouso, velocidade mínima para pouso, mistura? Saberia onde desligar o piloto-automático? Ajustar o compensador, o altímetro, fazer a fonia?
Saindo da elucubração, toca o fone e lá vem o “causo”. Curiosa coincidência.
Passei por algo real próximo, com piloto não enfartado, mas pior: bêbado. Divertiu-se em simplesmente recusar pilotar após a decolagem, dizendo eu ir me qualificar para bimotores na "raça". Pensei ser um chiste, mas o safado tirou as mãos dos comandos e deixou o troço ir para o diabo, entrando em curvas. Ria e disse que precisava cochilar. Pelo vermelhão do rosto percebi que estava bêbado mesmo. Peguei. Deu certo, mas não foi gostoso.
O piloto era destes adeptos de bebedeiras e brincadeiras extremas... e eu dos mais ingênuos.
Alguns são assim...