Capitão Travis
Talvez das mais lucrativas atividades dos tempos de outrora, o tráfico de escravos teve tristes lances de alguma inteligência. Quando ando pelo local onde trabalho e vejo que boa parte são descendentes destas humilhadas criaturas, literalmente caçadas e levadas em ferros para outras terras, os pensamentos vão ao capitão Travis.
Comandante de um negreiro inglês, slaver como chamavam. Em torno de 70 pés de comprimento, com 30 tripulantes em média e a carga de sardinhas humanas, 120-130 escravos, comprados por ouro, tabaco e prostitutas, sim, prostitutas brancas escravizadas por troca. Mercadoria valiosíssima.
Travis, anglicano fervoroso temente a Deus, porém nas escrituras nada leu que aliviasse o destino de escravos ou mulheres (não havia grande distinção no tratamento), de alguma forma fez do comércio soturno algo especial, pelo menos em sua nau.
Para que durante a travessia o negro não pulasse ao libertador trágico afogamento, estendia redes pelo convés, que não permitiam o pulo, nem ficar em pé. Durante as três ou quatro semanas de travessia, eram alimentados os escravizados com uma pasta de farinha de mandioca e óleo de dendê, o que de mais barato existia. E ocupava pouco espaço. A bebida era água.
Entre 20 e 25% morriam durante a travessia. Entretanto, seria justiça divina?, mas assim não via Travis, o mesmo ocorria com os tripulantes, pois também eram mal alimentados, açoitados nos deslizes, alguns até a morte; ou morriam de escorbuto, gripe, tifo. Outros, entre escravos e tripulantes, ao sinal de doenças contagiosas, para não contaminar a “carga”, eram discretamente excluídos. Seus ossos devem estar no fundo do Atlântico desde então.
Chegados ao Caribe, Brasil ou América do Norte, havia o preparo para o leilão da venda. Durante alguns dias eram bem alimentados, a pele untada com dendê para o brilho correto. As partes pudicas verificadas, para não haver pústulas. A questão da sexualidade, para o patrão, o feitor e a correta reprodução bastante importante. E alguma perversão, óbvio. E aqueles mostrassem sinais de diarréia, recebiam uma tampa em ferro e couro, de tamanho adequado, para não ocorrerem vazamentos durante a apresentação. Discretamente por baixo de tangas de pano.
Assim seguiam às fazendas, para trabalho das 5 da manhã às 10 da noite. Com banho aos domingos à tarde, durante a folga. Até o meio dia ainda se trabalhava no tal dia santo.
Travis, quando a viagem se tornava lenta pela falta de ventos, voluntariamente diminuía a carga. Em 30 ou 40%, escolhendo os mais fortes e, os demais, sem abrir-se as correntes, eram lançados ao mar. Onde devem estar até hoje.
Escravidão brutalizada ao estilo Travis ainda há, não nesta profusão. Estima-se a maior migração populacional da história da humanidade tenha ocorrido entre a África e a América. Involuntariamente. Doze milhões de seres carregados em ferros, acumulando-se seus descendentes nas regiões mais próximas do velho continente: Nordeste brasileiro, Caribe e sul dos EUA. Curiosamente.
O pobre Travis porém sucumbiu àquilo sua igreja, sua comunidade e seus familiares mais repudiavam. O amor por uma negra, menina de talvez 14 anos, quase a morrer de espancamentos antes de ser entregue pelo próprio pai a um traficante na Costa dos Grãos, foi por ele tratada, durante a viagem ao Caribe. E não a entregou a quem esperava, dizendo-a morta. Quando um tripulante contou o que ocorrera e a esposa na distante Inglaterra soube, Travis assumiu sua paixão, abandonou as viagens de tráfico e tornou-se plantador de cana-de-açúcar em Tortuga.
Nunca mais retornou à fria Dulham e aos seus.
Eram assim.