Callowtear *...
Debret em retratar os tipos da época, genialmente, talvez pudesse ter incluído alguns brasileiros específicos, muito comuns, mas, evidentemente existentes também em outras regiões do planeta. A mais me toca das debretianas é o “vendedor de vassouras”. Até hoje existem, nesta terra tão boa. Na moderna São Paulo, em meio a seus imensos edifícios vendem-se por ambulantes, como há 400 anos, vassouras e espanadores.
Porém há quem o pintor francês não ousou retratar: o caloteiro.
Nestes tempos difíceis percebe-se a dificuldade de pagar, as pessoas têm sofrido a manter seus compromissos em dia, uma ou outra fração se torna pesada a desembolsar e pimba!: não se paga, posterga-se, acumula-se e de repente surge a tal bananosa, expressão horrível, entretanto prática para descrever situações nos mostram a crueldade daquilo comentamos anteriormente, o capitalismo.
Confesso, jamais enveredei pelo árduo caminho da inadimplência e que São Judas me acuda se ocorrer, esta pesada trilha para muitos inevitável. Todavia, apesar das críticas mui brasileiras isto suscita, apresento defesa, mesmo não instado a tal. Sou maldito filho de imigrantes, gente veio sem nada. Por isto o trato com o tutu, de geração em geração é um tanto distinto da turma por cá há muito tempo.
De qualquer forma ou sorte, é necessário em determinadas passagens saber a quem ajudar, decorrência de arriscar inadimplências pessoais; e nisto, sou mestre, posso dar algumas sugestões, se me permitem.
Primeiro, e isto requer muita paciência e certa habilidade, é necessário distinguir entre o realmente necessitado e o caloteiro. As observações básicas recomendo:
O caloteiro tem a história bem preparada (sempre terrível), cita valores imensos e, dado o golpe, quem empresta e perde verá nada mudou. Coloca a sua situação acima da do credor, repassando-lhe porém parte da responsabilidade (“se não me emprestar, vai ser grande problema, até seu, cara.”). Entretanto manterá o caloteiro nível de vida, inconscientemente espalhará histórias vitoriosas sobre como sobrevive desta forma e ser tudo culpa do próprio, de quem caiu em sua história. Jura com palavras profundas que pagará, algum dia. E mostrar-se-á o mais magoado ou raivoso dos indivíduos se ventilada a possibilidade do calote, a rigor já deu. Outro detalhe a observar: sempre assim o será, é traço determinante. E, anotem, se o procurar jamais o achará. Celulares desligados, sempre. O melhor contato será a doméstica (da qual não abre mão) e a incauta ainda dirá que o patrão viajou para esquiar no Chile, descansar um pouco...
No fundo, porém, trabalha desta forma, não se incomoda, deixa-se manter por empréstimos choramingados, esposas ou maridos que trabalham, parentes ou amigos abastados. Conheço vários, porém é mais raro entre as mulheres, nestes anos todos só soube de um caso "feminino". Caí nas histórias de alguns e hoje tenho faro fino para tal. O caloteiro é de perfil específico: altivo, sempre bem-vestido e bem-falante, um tanto choroso alegando depressões e desvios no apelo final e a consolar o incauto emprestador com palavras do tipo “não-se-arrependerá” e “semana-que-vem-acerto-e-esquecemos”. Falam de pais renomados, de ser algo momentâneo. Porém, jamais pagam.
Já o de fato necessitado requer alguma destreza identificar-se. Mas não é complexo. O perfil é de certa humildade, as palavras fluem com grande dificuldade, pois lhe é penoso e humilhante pedir. Não fala de familiares, inconscientemente os exclui do seu tormento, a falta de dinheiro. Normalmente não chegou à situação por fatores próprios, provavelmente externos como demissão, acidentes, furtos e roubos ou comoções criadas pela centenária e interminável bandidagem política, com seus planos econômicos, impostos escorchantes, calotes generalizados ou falta de ensino público e seguro médico oficial adequado. As somas não são delirantes, apenas alguma coisa para resolver certa situação momentânea e insistem em devolver, da forma mais correta possível. E, se negada a ajuda, não se ofendem. Chateiam-se, entretanto não questionam, sabem quem daria trabalhou por isto, às vezes muito; valorizam.
Por sua vez o caloteiro pensa exclusivamente em si, seu conforto e tranqüilidade. As somas pedidas sempre altas. Jamais desmobiliza ativos para liquidar débitos; transfere-os oficialmente para parentes, foge dos devedores, faz cara feia ou desvia ao encontrar ; e admirado, quando informa que está vivendo com o gás de outros, é quase algo místico. Não saberia explicar, talvez o bem falar, o bem vestir..., o sutil charme do eterno perdedor... a aura do enraivado quando cobrado. São famosos alguns, os grandes caloteiros como os presidentes daqui e seus "depósitos compulsórios", lembram? Ou os golpes estilo Coroa-Brastel? Ajustes de Plano Verão? Os mais velhos lembrarão. Curiosamente aquele expulsaram do cargo, o incauto F.Collor, a quem acusavam de bandido, foi o único presidente que, de fato, devolveu os depósitos compulsórios, com juros. Todos. Acusado de possível caloteiro, não o era.
Mas o de fato sem recursos ou ativos a vender é desprezado, principalmente por parentes; e suas mulheres. Seu infortúnio, às vezes nem por si causado como escrevi, é motivo de vergonha. Me recorda filme japonês, onde a esposa exigia o marido desempregado mantivesse a rotina de ir e vir para imaginário local de trabalho, de forma a não criar suspeitas junto aos vizinhos e parentes.
Nestes momentos atuais, milhares de caloteiros se locupletam em suas vaidades e sem-vergonhices, governos e bancos à frente, deixam-se milhões literalmente em situação complexa, pois não pagam e dizem não podem. O caloteiro também é quem produz a pobreza, os sem recursos, em cadeia infindável.
São assim.
Assim como da forma até hoje encontramos os vendedores de vassouras, os caloteiros flanam entrem nós. Identificado pode-se negociar sua necessária distância.
E alertar incautos; o faço hoje em dia, sem qualquer cerimônia.
* Esta a forma como escreveu um gringo, explicando a outro como seria a entonação da palavra, em 1773, "An Englishman and Speciality Fur Trader in the Portuguese Land of South America", Bateman and Sons, Liverpool. Pelo visto, os calotes por cá têm tradição.