Somos assim
A definição contundente de um sagaz filósofo do século XIX sobre socialismo e capitalismo era de simplicidade cabal: capitalismo é o que somos, socialismo é o que desejamos ser. Se verificarmos a frase, saberemos o homem não acertou muito distante do alvo. De fato, no fundo, de alma e constituição, somos é “capitalismo”.
Não é possível tecer teorias sobre o fenômeno, tão próximo do instintivo humano, até animal às vezes. Apesar das tentativas. O capitalismo é apenas isto: produzir, vender, cada vez mais, e lucrar, pagando o mínimo de impostos e empregar a menor quantidade de pessoas; pagando os piores salários. Ou conseguir o melhor emprego com a pior qualificação, com estabilidade e horários flexíveis, poucos, ganhando muito e aposentado-se com plenos vencimentos. Mais humano e instintivo é impossível.
Selvagem até.
O mais bem intencionado socialista, com coração aberto aos problemas do planeta, justo e confiável, a trabalhar pela causa pública e abraçar questões maiores, na realidade sabe nada funcionar sem produção e geração de lucros. Sem o pagamento de impostos decorrentes. Sem empregar-se alguém, mesmo a baixos salários. Sabe estatismo ser o caos, onde a eficiência é a última prioridade e o poço profundo da corrupção, este fenômeno colateral de "capitalismo" mais cruelmente entranhado na carcaça humana, a vender favores.
E por isto o socialismo adotou as práticas horrendas do capitalismo, seguindo proforma aquilo Lênin promulgava: “Peguem do capitalismo o que ele tem de melhor; e apliquem ao marxismo.” O fazia pessoalmente, usando para sua movimentação nos interiores gelados ou enlameados da imensa Rússia exuberante e bizarro Rolls Royce inglês, com tração por lagartas de trator.
Ou dirigindo nossos olhares ao Oriente, onde as máximas sociais de Gandhi foram esquecidas, mantendo a Índia em castas perversas e hierarquicamente opressoras. E China, onde Mao Tse deve estar se contorcendo em seu túmulo gigante, vendo a grande nação estraçalhar-se num caos poluente e descontrolado, comendo Big Macs, voando Boeings e calçando Nikes.
Vejo em jornal destes dias desenho caricatural do Angeli, talvez nosso maior representante do ramo, onde senhores empertigados num camarote carnavalesco observam os foliões desfilando na avenida; e comentando “aquele eu conheço”, apontando para o sambista. E completa “demiti-o semana passada...”
O socialismo, o que desejamos ser, diria “correto!”, “temos que denunciar e combater os causadores do desemprego.” E o capitalismo, o que sempre somos, replicará “como se demitíssemos exclusivamente por esporte ou maldade nossa...”. Com isto aparecem os curiosos eufemismos no juridiquês ridículo se preserva ainda, como “demissão sem justa causa”. O que seria isto? Quantos dos terríveis capitalistas demitem por “maldade”, “picuinha”, “falsidade”?
Ou demitem por não necessitarem da força de trabalho por menos ou pouco venderem? O que seria a justa causa para demitir? Caos econômico, mercados em queda ou o funcionário destrói o vestiário, em raiva pelo baixo salário? Fato é: até o mais exuberante socialista, no desemprego, demite a doméstica, caso a tenha (K. Marx inclusive as namorava...)
De qualquer sorte baboseamos sobre a responsabilidade social das empresas, da participação nos lucros, etc., tentando pintar os empreendimentos como instituições sem os dentes afiados do capital e seu vibrante ímpeto pela sobrevivência.
Certo amigo, quando à frente de secretaria criada em estado do Nordeste, de cunho eminentemente social e socialista, a promover reformas agrárias, deparou-se com a grave falta de recursos e despreparo, refez alguns órgãos subalternos, contratando pessoas de gabarito, pelo currículo.
E arrasado revela em seu livro de recordações sobre a época, como se entristecia quando o peagádê de perfil socialista ouvia silencioso sobre sua função e atribuições, sobre os objetivos maiores da nova secretaria e daquele órgão; e a réplica, dolorida, vinha:
“Tudo muito bom, senhor secretário. Terei veículo com motorista à disposição? Qual o valor da diária em viagens? E para refeições, quanto pagam?”.
Até em escala maior, nas eleições onde perdeu Richard Nixon para John Kennedy, nos anos 1960, após a derrota o soturno Nixon recomendava ao público americano: "Ganhou aquele que retrata o seu desejo, americanos. Jovem, bonito, rico, inteligente e bem-falante. John Kennedy é o que procuram. Eu, baixo, feio, de origem humilde, loquacidade ruim sou o que vocês são. O verdadeiro americano. Eu sou a realidade"
Enfim, somos assim.