Os miseráveis
Peço emprestado a Victor Hugo, por apenas alguma linhas, o título deste escrevinhado. Ele que tão bem descreveu aqueles a sofrer a discriminação social pela pobreza. Ainda muito comum nessas nossas plagas brazucas.
Toda manhã (sim, cedo. Durmo cedo...) passo por cruzamento ironicamente chamado de Praça Iris Meimberg. Uma “praça” sem árvores, sem bancos. Apenas barulhento cruzamento, ao lado uma horrorosa usina de asfalto da prefeitura, poluente. Na outra margem um gigantesco supermercado.
Este pertencente, parece-me, à maior empresa do planeta, ou pelo menos era assim quando li a biografia de seu fundador. Tem mais de 1.000.000 de funcionários, mundo afora. Suas vendas situam-se entre os produtos nacionais brutos de nações, desenvolvidas até. Coisa de bilhões e bilhões de dólares.
O biografado, rico, talvez até o mais rico de todos os tempos, apresenta as fórmulas padrão para o sucesso à la americaine: trabalho duro, muito mais trabalho duro e depois um pouco mais... Chega a ser enfadonho; na verdade é, de fato, pois quando descreve as promoções em suas lojas de venda em massa de calcinhas, ou seja “baratas-mas-leve-dez”, vejo pouco brilho nisto. Porém admirável a fortuna, uma fábula. Que será fazem os descendentes com tudo isto? Trabalho duro, dizem.
Mas, de volta à praça que não é: na calçada, ao lado da entrada ao supermercado, aninhou-se o retrato da exclusão brasileira. Negro, entre 35 e 40 anos, imundo, barba e cabelos por fazer há anos talvez. Sua miséria é tal suas calças são apenas a parte frontal. O traseiro, nu, cobre com imundo casaco amarrado no abdômen. Passa o dia por lá. Quando volto à noite, vejo-o arrastar-se lentamente para certo ponto de ônibus, coberto, onde dorme.
Talvez alcoólatra. Mas sem forças ou valores para ir atrás de seu mel da alma. Apenas aguarda.
Assim como o falecido dono de supermercado tinha como rotina diariamente visitar um de seus milhares de estabelecimentos, o sujeito tem a sua. Nada pede, está apenas ali. Já vi o fotografarem, tentarem conversar, jogarem-lhe uma calça melhor. Passa os dias, nada faz. Interessante contraste: um homem sem nada, na calçada de quem teve tudo.
Quem nada faz para sobreviver em contra-ponto a quem tudo fez. Ambos derrotados. O dos supermercados pagou aquilo o qual podia, e muito era, para livrar-se do linfoma; mas nem tudo vai pela grana. O seu inquilino de calçada nada paga e irá, numa destas noites frias onde uma alma caridosa lhe dará o álcool excessivo que almeja. Será demais...
Sair da exclusão social para a exclusão definitiva.
Somos assim.