Foto do Hermógenes

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Arquitetura colonial e Julia da Silva Bruhns

Nesses nossos tempos de modificações as quais denominam de desenvolvimento pós-étnico, a eleição de um mestiço como presidente de grande nação dita branca, oriunda da escravocracia, nos faz entender fatores dormentes em nosso inconsciente.

E daí partir para a verificação de certos casos, a me pularem aos neurônios neste fim-de-semana passado, mais um na velha Parati (prefiro o i, me perdoem os puristas com o seu exógeno y). Chuvoso o dia, feitos reparos num bote lá mantenho, resolvi caminhar até a casa da Julia da Silva Bruhns; a obra a se desfazer lentamente, carcomida pelas intempéries e descaso.

Julia Bruhns Mann foi mãe de Thomas Mann, prêmio Nobel de literatura de 1929, talvez o maior escritor alemão do século XX, com suas narrativas sobre a burguesia.

Diz Crícia Giamatei: - “ ...artista dividido entre seus anseios e os paradigmas de sua época. O escritor Thomas Mann certamente não foi o único a vivenciar esse conflito. Para ele, no entanto, houve um fator determinante. Ou melhor, determinista. Além de artista e homossexual, ele ainda tinha descendência brasileira. Um novo estudo sobre o escritor alemão mostra como a origem 'mestiça' de Mann levou à sua inadequação à sociedade burguesa alemã.“ (1)

Th. Mann em suas obras pouco comenta sobre a origem da mãe, mistura de brasileira e alemão, nascida em 1851 em Parati, filha do comerciante e fazendeiro de açúcar Johann Bruhns. Diz: -“Minha mãe é originária do Rio de Janeiro, mas tinha um pai alemão. Isso significa que apenas um quarto do nosso sangue é latino-americano (2). Para nós ela contava sobre a beleza paradisíaca da baía do Rio de Janeiro, das cobras venenosas que existiam nas plantações do pai e sobre escravos negros, que eram espancados com bastões. A primeira vez que viu neve, ela acreditava que era açúcar”.

Estranhamente omitia a bela Parati da questão, assim como tratar-se da baía da Ilha Grande-Angra dos Reis–Parati, ao sul da baía da Guanabara (Rio de Janeiro, como informava).

Mann era travado gay, talvez a bagunça com a origem da mãe não fosse somente oriunda da alegada mania americana e européia de eugenia nas primeiras décadas do século vinte, onde a imaginada “mestiçagem” poderia ser comprometedora à sua arte literária, a pensar ser o novo Goethe e portanto só servia ser alemão no duro, completo.

Jamais por aqui aportou. O inconsciente o distanciava das origens da mestiçaria, que rejeitava por, talvez, ir a favor do undeutsch, algo como inalemão, antieugênico...

Julia, afastada pelo pai após a morte da mãe, foi aos 7 anos enfiada em internato alemão, na escura Lübeck; e depois assumida a criação por um tio. Casou-se aos 17 anos com um sujeito de 29, Thomas Johann Heinrich Mann, cuja meta era “responsabilidade, pontualidade e precisão!”, ou seja: o autoritarismo per se.

Morreu cedo de câncer de bexiga; Julia e seus cinco filhos seguiram para Munique e às artes. Mas com seus problemas, falecendo aos 72, em hotel de segunda. Gostava de encenar (uma filha atriz) e escrever (dois filhos escritores). Desconfiava da inversão de Thomas e depressão de suas filhas, que se mataram.

Provavelmente personalidade poderosa: em seu Morte em Veneza, a descrição da mãe do jovem diz-se lastreada naquilo Thomas Mann viu adolescente. É bem provável.

A casa que visitei é a sede da antiga fazenda Boa Vista, onde o avô de Mann decidia seus negócios e organizava a venda das safras de café, açúcar e cachaça. Deve ter sido construída pelo começo do século XIX, em vista do grande desenvolvimento que ocorria na região e no próximo vale do rio Paraíba, em relação ao café.

Porém para os padrões observados, dir-se-ia relativamente modesta.

E linda!

Magnificamente situada, com vista para toda a baia de Parati e à própria cidade, à distância. Pelo entendido de conversa por lá tive, algum empresário suíço comprou, desejava fazer algo como um condomínio de mansões em volta (são 225.000 metros quadrados de área) mas os órgãos de restauro e conservação impediram (o que reputo excelente). Me parece em função disto o imóvel foi parcialmente recuperado para não desabar; e nada mais.

As fotos dizem mais, da casa onde nasceu Julia.

É um lindo lugar, valeria o restauro, mas diria talvez Herr Mann: „ Alles muß bezahlt werden.“ (3)



(1) Jornal da USP/ 2003
(2) Grifo meu, pelo absurdo da manifestação de Mann.
(3) “Tudo deve ser pago”, disse Mann quando a Alemanha começou a ser severamente bombardeada durante a última grande guerra. Por aqui, pelo visto, também.

Julia Mann e parte de seus filhos. A brasileira de pai alemão provavelmente era fortíssima personalidade.

Ainda lindo o local, seda da Fazenda Boa Vista, do pai da Julia, Johann. Mas a pressão para lotear o troço é grande. Ironicamente o lixão de Parati, ao lado, esvaziou alguns ímpetos maiores.

O restauro foi mínimo, para não se perder a construção. É um lindo padrão, com a vista bem escolhida, além da encantadora varanda.

Nos fundos da sede, provavelmente parte do engenho de então; a cachaça era artigo de exportação.

As pedras pelo visto eram aglomeradas e mantidas com alguma mistura de argamassa à base de sangue de baleia.

Valeria o restauro, pelo apoio oferecido pela família Mann e o consulado alemão do Rio de Janeiro, mas a especulação imobiliária e a disputa dos orgãos de proteção alonga o processo.

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