Rostos de um passado distante
Uma foto envelhecida, para qual olho faz muitos anos, desde tempos onde ficava pendurada por sobre a escrivaninha de trabalho do pai. Algo nela aparentemente o lembrava de tempos, digamos, heróicos. Jovens lutadores, em guerra maluca, como todas. Mas, mesmo assim, enevoados com o espírito da camaradagem, das grandes amizades feitas em tempos de guerra.
Assunto a fascinar-me, confesso, pela complexidade em compreender o incompreensível: homens lutando inutilmente por terras, idéias e religiões.
Até à morte, guiados por insensíveis idiotas, os sanguinários militaristas e sempre míopes políticos. Aparentemente fotografia feita em 1941-42 na França; ele ao centro com seus 20 anos, tenente e, título complexo, Flugzeugführer, o "guia de aviões". Por aqui apenas comandante. Führer, ora; aparentemente palavra de moda à época. Usava-se em delirante profusão. "Chapa" batida com certeza antes de alguma saída para a perdida batalha da Inglaterra, onde em seu Junkers 88 deve ter feito incursões assustadoras, a detonar bombas em Londres, Coventry e outras.
Deflagrando posteriormente horrenda retaliação , com 600.000 alemães civis morrendo em suas cidades.
Perigosa foto, pois feita com motores girando, próximos aos meninotes. Na pressa. Contra a crença de jamais fotografar antes do vôo, traria azar. O que ocorreu, pois perderam a guerra. Ele por certo não perdeu a vida, por isto escrevo. Sorte e azar; andam juntos.
O rosto sério, algum medo com certeza. Aos humanos saudáveis é dado este solene direito. Os fones a diferenciar autoridades em vôo; preto comandante, os demais tripulantes. O da extrema esquerda, precocemente envelhecido, a máscara afrouxada, aparentando certo enfado ou experiência. Já à esquerda, próximo do meu pai, rapaz com olhar duro e sorriso forçado, fingindo-se tranqüilo.
O meu então jovem velho visivelmente acabrunhado, a força imposta na expressão não deixou alegria alguma florescer, os lábios apertados mostram temor, desconforto. Conheço isto, faço igual. Temor duplo, pelo vôo contra o inimigo bem preparado e pela responsabilidade, tão jovem, sobre quatro almas. À sua direita um outro menino, quase rindo com pretensa desenvoltura, os traços da inocência, criança que devia ter sido pouco antes da foto. Talvez seu primeiro vôo contra os bretões.
Quem sabe a cantarolarem trechos de Lili Marlene para espantar o gelo no estômago, ou sintonizar a proibida BBC no rádio de bordo, ouvir trechos bem tocados de alguma big band, com Woody Herman ao clarinete? Ou a terrível lista; lida pausadamente em claro alemão com sotaque galês, com os nomes de outros tripulantes mortos, já caídos em destroços nos campos inglêses?
Não sei da história, nem dos nomes, destes companheiros de batalhas do meu velho. A foto tem lá seus 65 anos, a indumentária já é quase jocosa, o tipo de avião coisa de filmes que víamos crianças. Alguns devem ter morrido por lá mesmo, enfrentando outros jovens. Todos obedientes, ameaçados de morte por simples fuzilamento sumário se não colaborassem. Regras draconianas.
Pouco mudou. Quem hoje se digladia nas idiotices insufladas pelos imortais políticos sedentos de poder são os mesmos jovens, incautos. Imaginando-se defensores de valores. Entregando suas vidas por nada, destruindo sua paz psíquica com imagens de morte, tortura, retaliações e tudo que enlameia o entorno da lagoa em sangue que são as guerras.
Somos assim.