Bacalhau que nunca chega
Não posso afirmar com clareza, porém penso ter lido em algum canto ser o Brasil o país onde mais se come bacalhau salgado e seco. Peixe dos mares frios do norte do planeta, consumido por lá in natura (parece para os ingleses o fish & chips passa obrigatoriamente pelo codfish; e a mistura de bacalhau fresco empanado com as batatas fritas só tem de fato sabor se embrulhada no Times...), à portuguesa, seco e salgado, por cá também.
Meu prato de peixe predileto, inegável. Quando vejo as postas à venda não resisto, apesar do preço pornográfico, a quase 45-50 reais o quilo. Porém 250 gramas já fazem belo prato, alongado com batatas, couves, azeitonas, cebolas, azeite, ovos e o capricho da cozinheira habilidosa.
Coisa de cultura absorvida, mescla de europeísmos, africanismos e asianismos somos. E o retrato principal é a culinária, depois da língua, a nós tão comum nem nos ligamos na origem distante, entretanto surgida na Itália, trazida à península ibérica pelos romanos e ajustada pelos faladores de Portus Calle, o termo original latino.
Quando criança tinha horror ao gadhus morua, usando de mais latinidades, nome do peixe bacalhau na língua do Lácio; morria de nojo ao cheirar ou ver empilhado na feira modesta do também modesto bairro de Santana onde cresci. A mãe alemã jamais fazia; coisas conservadas salgadas, mormente peixe, e azeite ou azeitonas eram assuntos inaceitáveis de europeus de segundo escalão, como considerava os espanhóis, portugueses, gregos, italianos...
Cresci, mudei e hoje sou aloprado pelo peixe. Que infelizmente por São Paulo, aqui tão consumido, em restaurantes é sempre pessimamente servido. As exceções são tão absurdamente caras a perder-se o prazer no repasto. Havia na Barra Funda o Bacalhau, Vinho e Cia., retirei da minhas listinha de bons restaurantes, da última vez temo me passaram cação salgado, o “tubalhau” do Ceará, com sabor estranho e preço norueguês. E o Antiquarius era irrepreensível, não é aceitável aquilo cobram, lamento.
Curiosamente comi bons bacalhaus em Manaus, não lembro o nome do local e, este inesquecível pela paisagem, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, também não recordo o nome do local.
O melhor de todos, até hoje, após seção de fado na Alfama em Lisboa, com os suaves acordes dos violões de 12 cordas esmurregando docemente ao fundo nossas sensíveis almas. Bacalhau que nunca chega com presunto picado, batata palha, ovos mexidos e bem quente; com copo de tinto, destes alentejanos, melhores pelo sol mais robusto nas videiras. Diz a lenda o último rei de Portugal, em viagem de Lisboa ao Porto, esfomeado pediu algo para comer e a estalajadeira sacou de todos os restos da cozinha para preparar a gororoba. O glutão adorou, pediu mais e mais e mais e mais...
Detonou a cansada gastrônoma: “Para este rei, é bacalhau que nunca basta, nunca chega ...”. Ficou o nome e a história.
O mais simples, porém passeio sensorial formidável, aprendi com amigo português, muitos anos por cá. A posta alta, o tal filé, demolhada e cozida. Quente, regada com azeite, também muito quente, colher de vinagre, batatas ao murro (cozidas com pele, depois dá-se pancada, curiosamente muda o gosto) e couve cozida. Vinho verde, João Pires bem gelado na goela.
E o mais surpreendente, em algum lugar próximo da pequenina Tomar, penso a caminho de Fátima, modesta venda de produtos em cujos fundos havia pequeno restaurante. E para lá nos leva o António Manuel, arquétipo lusitano, apresentando o bacalhau assado, simples, com azeitonas, cebolas e batatas cozidas.
Fico em dúvida se melhor de todos. Acredito que sim. Preciso provar novamente... tirar a dúvida
Sou assim.