Au bientôt
Ontem fui a mais um enterro; homem bom que se vai, após imensa e longa luta contra a Figura da Alfange. Lúcido até o fim, secundado pelas filhas, netos e esposa como só anjos fazem.
Existem anjos, acreditem.
Não estes imaginados, de asas e togas brancas porém sim os de carne e osso , a andar entre nós; e só nos apercebemos da presença de tempos em tempos. Todavia, como diz meu amigo Ayrosa, a fila está andando, chegamos em fase da vida onde a despedida dos mais velhos se torna não rotina, entretanto pouco mais frequente. A tristeza destes momentos é pesada, o céu encoberto, o fim do dia e seu lusco-fusco no antigo cemitério nos faz pensativos.
O homem não acredita na própria morte, me recordo dissertava Sigmund Freud. Com propriedade, pois se o fizesse, seria terrível e já jogar-se-ia o pano antes de subir ao ringue. Este ontem se foi, pelo que soube, segurou-se pelas cordas do tablado por quase um ano, absorvendo upper-cuts e forçando o clinch com o jardineiro divino.
Apesar de atenuar-se o medo da passagem com o discurso religioso lastreado no "daqui para uma melhor", não queremos ir. Excetuados jovens muçulmanos cegados pela bobagem dos mulás e as 72 virgens, ou kamikazes o fazerem pela imaginada honra à família, o número de voluntários ou aqueles acreditam em algo melhor, encerrado o período terreno, é diminuto.
Preferimos o planeta azul e sua poluição.
Somos assim.
A arquitetura do além, nos cemitérios tradicionais paulistanos é formidável. São tumbas transformadas em verdadeiras capelas, com pesados mármores, portões e grades, placas de bronze, anjos e cornetas de Jericó, fotos dos idos, passagens cuidadas, outras nem tanto, cruzes em profusão, arranjos com gramas, tumbas em gaveta, tumbas simples, discriminação social, pois no alto, próximo da avenida, as ricas sepulturas e seus monumentos, nos baixios as modestas; e tudo cercado por arame dentado, como se campo de concentração de almas fosse, porém é apenas para evitar os garimpeiros da morte, a procurar o miserável a fresca tumba; e quebrar aos defuntos os dentes, arracando o ouro. Garimpeiros paulistanos. E curiosa a equipagem da prefeitura para estas ocasiões, com atendentes e ajudantes de sofrível desenvoltura, com súplicas veladas por caixinhas, sem se apiedarem de viúvas recentes, a chantagear pelo momento difícil e enrolar o fechamento da cova. Com uniformes quase em trapos, sandálias de tira e compreensível péssimo humor, pela mendicância corrupta e, convenhamos, trabalho pouco cativante. Conheço professor de história que escreveu livro sobre o festejo da morte, em tempos de outrora. Preciso achar, fiquei curioso sobre as origens dos ritos nossos nesta hora tão complexa. No retorno solitário caminhando à morada ali próxima, não sei a razão, veio à mente uma música que ouvia adolescente, um tantinho cafona, cantada por Mireille Mathieu, a sucessora da Edith Piaf, A última valsa. Fui assobiando e hoje reli a letra. Ouvi também, muitos anos após. Misterioso. Aqui, para ouvir La dernière valse