Um pensador
O ato de lucubrar com clareza, concatenar idéias e divagar com precisão sobre o que ocorre na capacitação humana, aquilo o qual em princípio resumir-se-ia ao bom convívio, inclusive consigo mesmo, é dado a poucos. Alguns se arriscaram e arriscam, muitos falharam e falham.
Filósofos, poetas, pensadores, escritores, políticos, estadistas, fanáticos e toda gama de expoentes bons ou maus se aventuraram, e ainda fazem, por estas águas às vezes sombrias e tempestuosas. Dos antigos gregos a H.M. MacLuhan, de Santo Agostinho ao atual e vivo Michael Dummet, passando pelos potentes revolucionários Gertrude Stein e Jacques Lacan e, ainda estrela solitária, Sigmund Freud. Descartando-se muitos (Fidel, Adenauer, Kennedy e Nasser, por exemplo) porém enaltecendo H. Ahrendt, M. Gandhi, F.D.Roosevelt e o ainda corajosamente incansável e inalcançável Nelson Mandela.
Sem fazermos feio por aqui, apesar de nossa sempre presente “auto-esculhambação”, a desacreditar quem por aqui justapõe idéias, ou até as tem, e assim transmite. Machado de Assis, Afonso Arinos, Rondon, P. Rouanet e, bem ou mal aceito, F.Henrique Cardoso são a prova.
E outros novos, a encantarem com seus escritos e idéias a revolucionar e levar a pensar sobre dogmas estabelecidos, enfim, rearranjar conceitos. Mutatis mutandis.
Entre eles um pensador da Bahia, sem os “exigidos” vínculos artísticos; mais conhecidos os destaques por esse fator, país afora. Lembramos de G. Gil, C. Veloso e do falecido J. Amado; não são pensadores na acepção da palavra. São bons artistas, com algum renome intelectual.
Porém a Bahia dos pensadores Rui Barbosa, do jovem poeta Castro Alves e do abolicionista Teodoro Sampaio nos traz também Jairo Gerbase, cuja somatória de textos críticos sobre psiquiatria e psicanálise, publicada recentemente, nos mostram a vanguarda do novo pensamento. Pois não se atém às questões específicas da clínica, mas revê conceitos inerentes ao pensamento humano nos últimos 100 anos. Baseando-se em caracteres de literatura, na ficção como produto do pensamento humano, lastreada evidentemente em observações e experiências reais coletadas pelos autores.
Editado em 2007 pelo Campo Psicanalítico, o volume “Comédias Familiares: Rei Édipo, Príncipe Hamlet e Irmãos Karamazóvi” com hábil condução do autor faz repensar conceitos em sua área de especialização, a mente humana e seus caminhos (ou descaminhos).
Gerbase é amplo no compreender e, de certa forma, contundente com alguns conceitos tidos dogmáticos, que analisa em profundidade. Por exemplo, o excelente capítulo: “A psicanálise tem evidência?” Cito a parte conclusiva do texto, a impressionar e nos levar a refletir com mais delicadeza sobre o que é; e não é.
“Da mitologia de Édipo, creio que o dado mais importante, de que ele nada sabia, e a que Freud chamou de inconsciente, é o que se salva. O inconsciente é a suposição de que se pode fazer seja o que for sem o saber. Não de poder justificar nem explicar o problema da angústia e da alucinação ou qualquer outro discurso mental com base nesse fundamento, a não ser apoiando-se no detalhe de que o que está em jogo no Édipo é o fato de o sujeito nada sabia”.
Salva uma parte do estabelecido, mas introduz a idéia que a “ciência tem todo o direito de duvidar de uma teoria científica que pretende reduzir a explicação dos sintomas mentais ao complexo de Édipo”. E afirma : “sustentada neste fundamento, a psicanálise não tem evidência”. Por isto “exijo de mim, trazer outros argumentos nessa direção”.
O que faz; e ler sobre isto é fascinante.