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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Perdido

Raramente na vida andamos perdidos. Não perdidos nas coisas da mente. Perdidos de fato, sem orientação geográfica, sem rumo, não sabendo para onde ir. Os mecanismos de ontem e hoje, com placas de orientação de tráfego, sofisticados mapas e cartas, ao GPS, pouco permitem dizermos sei-lá-onde-estou.

Ou apenas perguntamos, com os riscos das explicações serem um tanto quanto confusas.

A sensação de perdido é porém curiosa. E assustadora.

Muitos anos atrás meu pai, graciosamente, me ordenou acompanhar a irmã e o namorado a uma viagem pelos Estados Unidos, a segurar velas. Ridículo, sempre obediente, fui.

No país mais equipado em termos de orientação aos perdidos, claro, me perdi. Errei o acesso em estrada perto da cidade de Philadelphia e fui parar em meio a bairro predominava uma turma meio encrenqueira, soturnos, de roupas coloridas; não muito fãs de curiosos. Olhavam os três turistas no carro alugado como se fossemos invasores perigosos. Corajoso, parei em boteco-posto e perguntei como sairia da área para ir à auto-estrada. Nem responderam; riram. Segui adiante, já com medo de assalto quando uma placa com downtown ou similar, indicando o centro da cidade me salvou.

Anos depois, no mesmo país, meti-me a voar em monomotores. Um curso na Califórnia garantia brevê e experiência de vôo em apenas 3 semanas contra o seis meses daqui (e mais barato...) Lá fui, incentivado pelo pai (sempre ele...). Piloto, queria o filho também o fosse.

De fato o troço era um tanto puxado, com 3-4 horas de vôo por dia e ainda o mesmo tanto em aulas teóricas. Quando solo, ou seja apto a voar sozinho, era necessário fazer 4 vôos chamados crosscountry a cada um percorrendo 4 cidades.

Os primeiros três não foram problema, a meteorologia e alguma experiência anterior com planadores não me deixaram preocupado.

Porém no quarto vôo, de San Jose, via Napa, para Sacramento e por fim Stockton e volta a San Jose (jamais esquecerei estes nomes) senti o que é de fato estar perdido.

Pousado em Sacramento, percebi a tal inversão térmica (similar a nossa) fazer nevoeiro mais denso. Porém imaginei no destino, como informava a torre, não haver o problema, pela previsão. Decolei e após certa altitude, de fato, havia lindo céu azul, mas abaixo somente névoa. Ia pela bússola. Em 1980 não existia GPS.

E após 20 minutos soube acontecera o inimaginável: aluno brasileiro, voando em monomotor pelos céus de país estranho, sem saber direito onde estava nem para onde deveria ir. Olhava a carta, a bússola e o solo, e nada concluía. Descer e futucar pela névoa não seria a melhor idéia. Havia montanhas.

Respirei fundo, peguei o microfone, radio sintonizado na torre de Stockton, que imaginava próxima, e detonei: Cessna November 49859, estou perdido.

Calmamente o sujeito da torre perguntou se eu era aluno. Confirmei. Disse-me para manter o microfone pressionado, transmitindo nada por 30 segundos, pois iria me “triangular”. Feito isto sabia onde eu estava e iniciou certa vetoração, dando-me apenas o curso a seguir e ir baixando de altitude. No meio da névoa, fina, e na qual nada se distinguia direito guiou-me até, como em mágica, surgir a pistona à minha frente.

Fascinante.

Chamaram-me à torre, queriam conhecer o exótico espécime estrangeiro, explicaram sobre a meteorologia californiana no inverno deles. Apresentaram policial rodoviário, que voava, e este me deu as dicas finais: “na dúvida, sem rádio e perdido, assim que ver uma estrada por entre a névoa, desça e a siga. Se necessitar, pouse, na própria estrada, com o fluxo do automóveis." Ai, ai, que alento...

Nada disto ocorreu, ufa! Decolei novamente, o nevoeiro dispersara e cheguei ao destino.

Entretanto é certa sensação tanto complexa, admitir estar perdido e pedir socorro. Hoje com as ajudas eletrônicas é mais simples.

Saio com meu filho de 14 anos em barco e este, como se fosse grande videogame, toca as 8 toneladas na ponta do dedo, auxiliado por piloto automático e GPS.

Já não é possível perder-se assim facilmente.

Aprendendo a voar na California, 1980. A minha esquerda o mais irresponsável dos irresponsáveis na aviação. Mas é história para mais adiante...

Policial rodoviário alado me ensina o que fazer em emergências como neblina súbita por inversão térmica, comum por lá.

A clássica neblina ou nevoeiro leve que se aninha no chão e complica a aviação por lá. E por cá também...

Comentários (clique para comentar)

Hermó - 16/06/2008 (09:06)

Obrigado pelos simpáticos comentários, fico lisonjeado. Vou procurar hoje seu livro e ler, tenho grande estima pelos escritores baianos, como Hélio Pólvora, Jorge e James Amado, Euclides Neto e João Ubaldo Ribeiro e sei que vou adicionar mais um, com toda certeza, a esta fina lista.

- 13/06/2008 (12:06)

Valdeck Almeida de Jesus - 13/06/2008 (11:06)

Muito bom o artigo... Quem já não se perdeu nesse mundo? Eu meu livro "Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden" (Giz Editorial, São Paulo: 2007), conto uma história muito interessante, que aconteceu comigo, uma irmã e minha falecida mãe. Foi um Caapora que nos pregou uma peça e só nos permitiu encontrar o caminho de volta após uma oferenda de fumo. Sorte que minha mãe mascava fumo, tinha um pedaço enorme na sacola, foi o que nos salvou. Tantas outras histórias poderia contar aqui. Hoje em dia, no entanto, não dá para se perder tão facilmente. Até celular com GPS já existe! Mas somos humanos, e iremos "nos perder" por aí, muitas vezes. Parabéns pelo texto. Valdeck Almeida de Jesus www.galinhapulando.com

Hermó - 12/06/2008 (17:06)

GPS até o banheiro... não pensei nisto ainda. Após uns scotches seria até interessante... Pelo menos não confundiria com o armário da patroa.

JORGE DOS SANTOS - 12/06/2008 (13:06)

Putz! Você sempre esteve e está muito bem. Eu estou quase precisando de um GPS para ir ao banheiro...

Hermó - 12/06/2008 (09:06)

Lá se vão 28 anos... parece foi ontem.

Andrea Paula - 12/06/2008 (09:06)

Apesar de tudo uma bela aventura....