Foto do Hermógenes

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Z.

Curiosamente seu desprezo pelos humanos acumulava-se em poucos lamentos de incompreensão. Em crescendo formidável, a não desejar mais tê-los à volta. Ultra-antropofóbico, irritável com a mera presença dos bípedes falantes.

Não ia mais a cinemas pelo ódio a quem ao lado sentado comesse pipocas fedorentas, regurgitando sonoramente. Ou trafegasse em aviões, disputando apoios de braço com criaturas titulava folgadões. Se armado, mataria, se furassem filas em bancos, onde buscava a magra aposentadoria, com descontos eternos.

Revia estranho filme gringo, Dia de Fúria, onde cidadão comum estourava de ódio e incompreensão; partia para aquilo popularmente denominam ignorância. Achava certo o início, bobo o final com a lição moralista devermos ser bons, obedientes e tolerantes.

Pensou em fazer-se ao mar, para sempre. Longe das pessoas. Em veleirinho, lia muito sobre isto.

Não tinha os meios e o mar era distante; e desconhecido para ele, homem urbano. A odiar outros urbanos. Cada vez mais.

Isolava-se, tanto e tanto.

Comunicava-se escrevendo, raramente por telefone. Relia a biografia de Howard Hughes, o milionário antropofóbico passara anos sem contato com os seres chatos, que cobravam, desejavam proximidade, favores, calores e alentos.

E relia, e relia.

Encontraram-no semana passada; foi a empregada doméstica, de anos, aquela Z. tolerava pois não falava, não se aproximava, fazia o certo. Caído no vestíbulo, por sobre o computador.

Sua última frase, ainda no ligado monitor, fosforecendo miúda:

- "Me deixem em paz."

A antropofobia pode ser reação à hiperpopulação em alguns cantos, acham os especialistas. Os psicanalistas divergem: cada caso é seu caso.

Há momentos em que é necessária a solidão? Há?

Comentários (clique para comentar)

julia - 12/06/2008 (17:06)

afe! vamos mudar este cenário, pelo amor!

António Gomes André - 10/06/2008 (08:06)

Thomas, Um dia destes falamos, correcto ? Um abraço.

Hermógenes - 07/06/2008 (16:06)

Belo texto, amigo António. É revelável quem escreve ou seu anonimato é o desejo?

António Gomes André - 07/06/2008 (11:06)

A questão de haver necessidade ou não de alguns momentos de solidão, faz-me recordar um pequeno trecho de alguém, cujo o estar, eu aprecio imenso. Dizia ele então: "É contra mim, que eventualmente Posso lutar. Sou inimigo de mim mesmo E projectista nato de mim próprio. Se falo e me digiro, faço-o Por conta própria, não tendo Outro inimigo. Se luto e desfaço o que De mim pertence, será De mim que exijo e Do alheio nada congrego. É contra mim, que eventualmente Luto. Faço e desfaço o que de Mim existe. Não pactuo a Luta com o inimigo nem a Imagem que dele possa ter. Não tenho o inimigo por perto Ou nos arrabaldes da imaginação. Será contra mim que luto, Porque não posso ter outro inimigo..." Em alguns momentos solenes talvez seja de bom tom a existência de se estar só.