Quanta cultura em um quiabo!
De Luiza Bussius, Serra Grande, Bahia.
Por algum motivo, nem sei bem ao certo fui estudar Geografia. Pensar a Terra, os territórios.
As dinâmicas naturais me fascinavam, assim como as sociedades humanas. Havia algo antropológico nas minhas indagações adolescentes e algo sublime quando eu estava nas paisagens naturais. Minhas memórias doces da infância tinham mar, espaços amplos, estradas de terra, avistar animais silvestres.
Quando descobri que havia gente estudava as mais diversas categorias de espécies vivas, me encantei. Foi amor mesmo, por sujeitos com quem tanto aprendi sobre a vida que pulsa para além, muito além dos humanos.
Passado já um bocado de anos formada nessa ciência geográfica, estive em chão de escola, mas acabei indo para o campo, para a roça, para a terra. E tenho pensado nisso, nessa terra que pisamos e de onde viemos: minhas raízes.
Como muitos brasileiros, tenho essa miscigenação nas veias. Hoje mesmo explicava minhas origens. De um lado Bahia, ipiauense, de outro germânica, do norte da Alemanha. Fui criada em território neutro (?) chamado São Paulo. Terra de muitos migrantes e imigrantes. Nasci lá e por ali mesmo me formei, estudante construindo meus primeiros laços fraternos com as amigas da escola.
Aos 18 tive a sorte de poder sair da metrópole para cursar a tal da Geografia e fui vendo que o mundo era vasto, grande, muito além do que eu podia imaginar... Tanta gente diferente.
Apesar de escutar alemão no almoço quando chegava minha avó, passávamos religiosamente as duas férias do ano na Bahia. No mínimo 1 mês. E é daqui da Bahia que escrevo sobre raízes. Se um dia passar uma temporada na Alemanha será outra história...
Tento me lembrar, com certo riso, que quando menina e mais ainda quando adolescente, o desejo de viver nessa terra já era latente. Me lembro das conjecturas jocosas sobre passar uma temporada para estudar ainda menina em Salvador ou pedir a minha mãe para morarmos por essas bandas.
Era como se a Bahia fosse "O lugar". Porque era afeto e era natureza.
Não cabe explicar a dificuldade de encontrar mato morando nos grandes centros, de avistar um céu estrelado, cruzar com algum animal selvagem, ou escutar o silêncio profundo.
Me pergunto se foi a busca pelas memórias de infância ou se foi o fato de minha família ter terra na Bahia que me trouxeram pra cá e aqui ter escolhido criar meus filhos.
Hoje, depois de cortar quiabos por 2 horas para o caruru da escola, escutando a história dos ibejis sobre a mitologia dessa bela celebração de generosidade da cultura baiana, afrobrasileira, me emociono. Sendo branca, letrada, numa estrutura de privilégios, demorei para descobrir as histórias e hábitos que não me foram contados, não porque me ocultaram, mas por que algumas facetas da experiência só se compreende e alcança, fazendo.
Na minha família materna quem faz caruru são as cozinheiras, senhoras funcionárias que aprendem o tempero bem jovenzinhas, provavelmente com suas mães, avós e tias, na mistura do pilão, no jeito certo de cortar. Uma verdadeira alquimia.
O caruru podia ser servido na casa da vovó, na casa de uma tia ou de um tio, mas quem pilotava as panelas, cortava, agregava o sabor eram essas mãos trabalhadoras. Acho que não me lembro dos meus parentes cortando quiabo, mas posso ver a alegria dos que saboreiam o dendê ao estar em família num dia de caruru.
Quando formada experimentei minha primeira temporada na Bahia, habitando uma casa de praia com um primo querido. Nesse contexto fui voluntária numa escola e me lembro com nitidez da professora que lecionava. Pele de um negro sedoso, cabelos trançados. Certo dia cheguei e lá estava ela sentada com uma bacia no colo e nas mãos uma faca que repetia os movimentos de cortar quiabo, afinal era setembro, mês de oferecer caruru. E naquele cenário escolar, com meninos correndo, lápis e caderno, o quiabo miudinho ia amontoando na bacia e ela me contava com sorriso aberto no que eu podia ser útil com a criançada.
Fui juntando lé com cré, fui pensando nos quase 7 anos de Bahia, refletindo sobre minhas raízes que a cada dia se adentram mais e mais nessa terra que escolhi/herdei, e cortando quiabo e escutando sobre os orixás vou entendendo quantas lacunas existem na minha existência cultural e me fascina saber de tanta coisa que não sei, mas posso saber, num simples ato de querer aprender algo diferente e fazer parte de um todo maior, nada de ordem mística, apenas cultural mesmo, humana.
E viva Cosme e Damião! Com muito caruru!