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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Atravessamentos

Desde a primeira vez que pude contribuir com esse perfil, minhas pautas sempre envolviam temáticas das quais eu conseguiria falar com algum tipo de sobriedade imparcial. Isso é um pouco diferente quando decidimos falar da morte de alguém que amamos (e muito).
 
Mas por que decidi falar sobre isso ?
 
Porque a gente vai descobrindo, no percurso – ou travessia – de um tratamento oncológico que as pessoas (ou a sociedade), autointituladas pós-modernas, livres, democráticas, igualitárias, evoluídas e descoladas ainda não estão preparadas para enfrentar a única coisa da qual segue certa do seu acometimento: a morte.
 
A Medicina também não sabe lidar com o câncer. Nem está preparada para ele. Talvez, jamais esteja. E mesmo que um dia  venha a melhorar esse relacionamento, seguiremos certos de que seu tratamento, embora – eventualmente – exitoso, esbarra no estigma que se criou diante dessa doença física (e existencial).
 
Foi o câncer que me fez desejar, ainda que forma inconsciente, mais a própria morte do que a doença. E as duas, que se comunicam de forma tão íntima, são assombrosamente relacionais: não há um único ser humano que pense em uma coisa sem que, eventualmente, não se tenha perguntado – ou vivenciado na própria pele – a outra.
 
O câncer se impõe e sobrepõe sobre qualquer outra enfermidade: ele se apresenta. E todo o resto de nossa existência que lute para reconhecer que ele existe, atua e fala através das pequenas falhas que o nosso corpo mostra, diariamente e de forma tão sutil que qualquer outra enfermidade acaba servindo de máscara e disfarce para encobri-lo.
 
Pior que a Medicina acabam sendo, em diversos momentos, os médicos: acreditam, com todo o coração, que estudo, pesquisa e remédios suprem seus próprios medos. Não se sabe como a quimioterapia responderá – ou se responderá - em cada paciente. Sabem menos ainda como cada PACIENTE enfrenta esse tratamento – seria esse, de fato, o termo correto ? –, até porque em tantas vezes sequer saem vivos dele.
 
As redes hospitalares, que tantas e tantas vezes transformam enfermos em clientes, se escondem atrás de equipes “multidisciplinares”, na certeza de que a multicidade de informações, dados, novidades, termos técnicos e quartos de luxo, até um determinado momento, conseguem esconder a verdadeira face do câncer (e também da morte): a dor como uma constante. Um coeficiente imponente e tão relevante que se torna, depois de um determinado estágio com que a enfermidade avança, a principal métrica de avaliação clínica.
 
De forma orquestrada, vamos tropeçando nas partes de vida que o convalescente vai deixando ao longo da jornada em cada sessão: o tratamento do câncer e os estigmas a ele atrelados matam mais que a própria doença.
 
Junto com ele, a família adoece. Adoece, em especial, pelo medo e pelo desconhecimento do dia seguinte, do momento seguinte, das horas prolongadas em cada sessão de quimioteriapia-alquimia que se passa na esperança de que, ao menos naquele dia, o doente não sinta tanta dor.
 
Vive-se em estado espiritual de emergência hospitalar. Tudo, a qualquer momento, pode mudar.
 
E há os estigmas. Da doença, dos seus efeitos estéticos, do emagrecimento, da tristeza, da própria palavra CÂNCER … (!).
 
"Ao fim e ao cabo", as coisas seguem o seu curso da exata maneira que sempre seguiram.
 
Tantos outros já se foram pelas mesmas causas, e tantos outros partirão pelo mesmo motivo ... e até que a Medicina traga respostas concretas sobre o que fazer, seguiremos certo de que com ou sem o câncer, a morte chega para todos. Com ou sem dor.
 
O câncer levou meu pai, mas não levou o que foi cultivado em vida: memórias, resiliência e afeto.
 
O resto é distração de folhas das árvores alheias … e sobre as raízes do outro não me cabe palpitar.
 
“À medida que eu domino as coisas porque as atravesso com entendimento, as coisas também me dominam pelo atravessamento que entender causa em mim (…) e assim me reflito em tudo aquilo que eu entendo e que por isso, me possui um pouco”.
 
Viver a (boa) vida em vida ... para que se possa descansar (e partir) em paz. O que é bom sempre fica.
 

 

Patricio Rezende Teixeira

Comentários (clique para comentar)

Regina Junqueira - 13/08/2025 (21:08)

Um nome tão imperioso que se coloca como único: câncer. E consegue a façanha-sonho de todo imperador: é onipresente. Reina, por enquanto, em mais de cem doenças diferentes, com uma única arma para todas: produzindo células ensandecidas. Dizem que todos vamos morrer de câncer a menos que morramos de outra causa antes. A palavra câncer não me abateu como eu supunha antes de o contrair, por que era comigo e não de alguém da minha família. Tenho mais medo do luto do que da morte. Longe de mim ambos os dois, pleonasmo proposital em negrito se pudesse, assunto recorrente nas conversas, livros, filmes que nessa fase da vida recaem em nossas mãos, ou serão atos falhos? Meus sentimentos à família pela dura perda.

Denise - 13/08/2025 (16:08)

Sobre sofrimento, amor e morta. Assim, vamos fazendo o luto.