Foto do Hermógenes

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Cheiro azêdo.

Por Erdam  Adasnac, de Timor Leste.
 
Li por ai que é preciso deixar de lado a ideia de limpar e organizar antes de escrever.

Uma casa com 3 crianças está sempre produzindo sujeira e bagunça.

Migalhas, copos que derramam, brinquedos dispersos pelos cantos e chão.
Roupas sujas de xixi, fraldas com coco.
 
A dinâmica das crianças costuma ser enérgica e repleta de surpresas. Por mais que nós mães estejamos numa luta contínua de planejar e organizar as rotinas e ritmos, a hora de fazer cocô casa bem com a hora de sair de casa.
 
E está tudo bem! Importante fazer cocô todo dia!
 
Assim que trancamos portas, janelas fechadas, mochila com fraldas, o ar é tomado por um cheiro levemente azêdo. Sim, ele fez. Voltamos alguns passos para limpar.

Quantas vezes ao longo do dia formulo frases na minha cabeça que gostaria de escrever. Penso nas minhas leituras. Vejo as cenas do dia a dia. Escuto-os e minha mente atiça-se para escrever…mas a escrita fica para depois.

O sol se vai. Iniciamos a rotina da noite. Banhos, jantar, higiene, acalmar para dormir. Tão plácido fica o ambiente depois que dormem.
 
Dizem que vou sentir saudades desse caos.

Eu posso dizer: adoro o silêncio.
 
Me animo para meu momento de sossego, finalmente um trabalho intelectual concentrado. Maternidade é presença e corpo: carrega, limpa, abraça, cuida. Além dos desafios emocionais, o cansaço é físico mesmo.

Leio um pouco o livro de cabeceira. Romances, educação. Acesso as notícias do dia. Recortes do mundo. Do território brasileiro. Penso nas tantas realidades que coexistem. Nas tantas mães que criam seus filhos nas condições mais diversas. Fico em paz com meu teto que me protege da chuva que cai lá fora.

Um deles acorda. Está com muita meleca. Dou de mamar. Penso nas notícias q li. Na imigração, no nióbio, nas guerras q não cessam. Lembro de Federicci q diz que ao parir estamos produzindo mão de obra. Penso numa grande greve das mulheres em interromper a reprodução. O fim dos humanos? Trago meu peito de volta. Ele dorme outra vez.

Volto para meu livro e revisito uma conversa que tive. O corpo vai pesando. Leio as linhas, junto as palavras. Me deixo levar por aquela que escreveu. Quantos mundos.
Numa citação das citações que li esses dias estava: escrever é como fechar os olhos. Tento reencontrar a citação, não encontro. Reflito sobre. Ao fechar os olhos sonhamos? Descansamos? Relembramos? Ponderamos.

Sinto minhas pálpebras pesarem. Escrevo. Leio.

Ainda me interesso pelo assunto, quero um pouco mais. Para escrever preciso pausar. Soltar as rédeas da rotina deles, da minha, sair de cena. Como ainda não tenho um cantinho pra chamar de meu escritório, escrevo nas notas do celular enquanto balanço ele na rede, no carro estacionada a uma distância suficiente de casa.
 
Releio o que escrevi. Relembro. Repenso.

Vou e volto. Brincando um pouco com essa lógica de registrar o que já foi, o que ainda está.
 
O sono vem, já não vejo folha, letra, papel. A cabeça cai. Me assusto e volto para essa dimensão acordada e cedo: É hora de dormir.

Comentários (clique para comentar)

Odnarotuod Ajuroc - 11/03/2025 (22:03)

Escrever pra mim é construir uma casa, esparramar o caos no espaço... dificilmente quando escrevo estou num local organizado. Quem disse que escrever é fechar os olhos? Será por isso a insônia que me deixa de olhos estatelados quando se aproxima a entrega de um texto? Lacan equivocava \"poubelle\" [lixo] com \"publicação\", criando o neologismo \"Poubellication\" [\"publixação\"]. Escrever é também sempre algo da merda... quem segura demais não caga! E nem publica

- 10/03/2025 (15:03)

Emociona!