Labuta
Por Erdam Adasnac.
Levanto e vou para o banheiro.
Fui a primeira a acordar. Isso tem sido o habitual. Também sou a última a dormir. Troco a roupa, lavo o rosto, tento fincar meus pés no chão para encarar mais uma segunda que se inicia. Inícios costumam ser difíceis. Para adultos e crianças. A leitura da noite anterior me capturou e não pude parar de ler até encerrar o livro. O que seria de mim sem os livros?
O alarme toca. 06:30. Preparo a cafeteira. Preciso dela. Abro as cortinas, os meninos começam a se mover. Vão voltando desse estado tão maravilhoso e enigmático que é dormir. Logo cedo esbravejam: Não queremos escola! Eu argumento: atividade de criança é escola. Adulto vai trabalhar.
Escuto e me arrepio: -"você não trabalha!" Respiro fundo. Ele conseguiu. Mirou bem e conseguiu. Me abalo.
Como não trabalho? -"Você fica olhando o zap, ele retruca."
-"E o que acha que faço olhando o zap? O que resolvo por lá? Onde está o trabalho da babá que estava aqui cuidando do caçula? Quem faz isso agora?"
Me lembro da minha atual situação. Recomeços. Penso: preciso voltar ao trabalho fora de casa, preciso de uma babá.
Mais uma vez a maré da produtividade me inunda. Meu filho pensa que minhas ações não são trabalho. Como demonstrar pra ele que, sim, cuidar dos filhos é trabalho? Sem que ele se sinta culpado por dar trabalho? Como falar de trabalho doméstico, maternar? Trabalho não remunerado.T
Tento me organizar com as palavras.
Apenas uma risada seria suficiente para retrucar tal observação. Talvez falte frieza de minha parte para lidar com uma observação tão infantil.
Ele sabe que me atinge. Percebe minha indisposição em seguir o diálogo. O efeito vai se desdobrando. Todos choram. Ninguém quer ir à escola.
Respiro fundo mais uma vez. Preparo o lanche do maior, arrumo a mochila do menor. Repito internamente: mais alguns meses. Lembro do sonho quase pesadelo: não podia viajar por que estava amamentando.
Que caminho segui? Já são 7 anos que me tornei mãe e ainda essa ladainha...
Recupero a memória: o que fiz nesses anos? Onde trabalhei? O que construí? Por que não valorizo o trabalho de criar meus filhos? Concluo: preciso de um trabalho externo para mudar de assunto. Não é possível estar colada com eles o dia todo. Estudar, ler, discutir, transformar, reformar, inventar, melhorar. Ser produtiva.
Caralho, voltei para o meu sintoma! Você já é produtiva. Você tem sua grana. Relaxe.
Atendo às demandas. Algumas delas. Tomo goles de café. Mastigo alguma comida. Já são quase 07:30. Acelera! Engrosso a voz para ser atendida. Escove os dentes, por gentileza. Coloque o sapato, por favor. Cadê a mochila? O choro segue: colo, não quero ir para a escola!
O do meio me avisa que tem cheiro de cocô. Ele tem um olfato imbatível. Carrego o caçula e o levo para o tanque. Melhor lugar para higienizar. A frase de que não trabalho segue ecoando em minha mente.
Verifico o pequeno com algo na boca. Retiro uma peça pequena de Lego. Anjos protetores. Ele completou 1 ano, já saiu do ranking de mortalidade infantil. Ufa! Pego a fralda limpa, coloco a fralda com certa dificuldade pela inquietação do bebê. Será minha essa herança de serem tão inquietos? O que você escolheria se pudesse transmitir uma característica de personalidade a seus filhos?
Respiro, enxugo o suor que escorre entre meus seios. Levanto a camisa, ofereço o peito. Penso que deveria diminuir as mamadas. Mas também sei de como o leite materno é bom pra eles. Lembro dos mamíferos. Me sinto baleia, loba, cadela, raposa. Os bicos dos peitos estão levemente doloridos, pelas sugadas noturnas.
Ele é o terceiro, preciso dormir, ofereço meus peitos e volto ao reino do descanso. Daqui uns meses fecharei essa torneira. Me apaziguo.
Enquanto amamento penso no que posso fazer com as mãos. Levo o celular. Olho o zap, tento resolver algo, tomar uma decisão, me comunicar com meus parceiros de gestão. Gestão de que? Da vida, da família, da casa, da fazenda, de algum outro trabalho além de cuidar?
Será que se eu me arrumasse e fosse trabalhar fora de casa eu estaria trabalhando aos olhos de meu filho?
O dia se desenrola com uma onda de desânimo. Maquino ideias e me afogo em copos d'água pensando qual a melhor solução para deixar meu rebento. Em quem confiaria mais? Meu parceiro já divide muito e ele precisa trabalhar.
Vou ficando mais um pouco com eles. Jajá eles crescem.
Penso no tempo. O tempo de maternar que sempre me deixou aflita. Quando o primeiro nasceu pensava: apenas 6 meses, depois volto a trabalhar. Durante os 6 meses pensava: nunca trabalhei tanto. Que cruel trazer a lógica capitalista para o maternar. Preciso driblar ela. Penso em fugir. Como seria?
Retiro lentamente o bico do peito da boca dele. Ele chora. Ok, eu devolvo. Permito que me suguem. Permito que se alimente de mim. Isso é muito bonito. Eles se alimentam. Esses pequenos seios geram esse líquido adocicado tão amado e desejado. Me sinto poderosa, apesar de um pouco cansada.
Vejo um post da quantidade de horas que passamos amamentando. Daria uma jornada de trabalho de 8 horas diárias. Sinto alívio. Penso em como falar ao meu filho sobre esse trabalho da mãe que não termina, está sempre acontecendo, até de madrugada. Sei lá. Ele não vai entender.R
Recolho alguns brinquedos no chão. Escuto um barulho de outros caindo em um canto distante da casa. Por que eu sigo recolhendo?
Não gosto de bagunça. Uma amiga me diz: melhor se acostumar ao caos. Do caos surgem muitas soluções… Será?
Meu filho mais velho se aproxima com um sorriso maroto e pula no meu colo. Me dá um abraço, sua maneira de pedir trégua. Eu o afago em meu corpo materno que perdoa com muita facilidade.
Penso como farei para pedir trégua da minha mente. Ela sim, minha maior inimiga.
Erdam é nascida em Dili, Timor Leste, data incerta mas em torno de 1987. Escreve sobre as agruras e delícias, não nessa ordem, de ser mãe. Divide com o parceiro portoriquenho a criação de três meninos, em uma comunidade alternativa na Costa Rica. Seus artigos serão parte de novos lançamentos literários aqui no www.hermo.com.br. (Texto adaptado do português timorense ao brasileiro com uso de IA).