Albertina não suportou mais a fome e a cidade.
Por Euclides Neto, 1925 - 2000, de Ipiaú, Bahia.
O amásio largou quando estava prenhe do filho caçula. Também ele não prestava mais pra nada. Um troço. Se pegava uns miúdos do servicinho escasso da rua, metia no rabo da cachaça. Batia nela e nos meninos. Ainda dizia que era dono de uma mulher-por-conta, lá na Pedra do Curral Novo. Traste cruzador de uma figa. Melhor corno estava agora. Viveria do que Deus fosse servido. Restaram doze filhos.
Três fêmeas se perderam na vida do mundo. Dois machos foram embora, ninguém sabe pra onde. De um tivera notícia: meteu-se com coisa ruim e a polícia disse que resistiu à voz de prisão. Mataram. Descansou.
Restaram os menores, nascidos da sua madre. E mais um, encontrado na saída de Jequié, que gemia dentro de uma caixa bichinho rejeitado à sina. Nascera naquela madrugada.
Comeram o último pedaço de pão dormido à beira de um tanque, quando a mãe pensou em dividir uma parte da trouxa com os filhos maiores. O caçula, já enganchando, foi para o quadril de Berenice, a menina mais velha. Chorou de dar dó ao largar o aconchego materno. Albertina resmungou, ameaçando jogar um bocado de peso fora. Referia-se aos restos de brinquedos achados no lixo. Como os donos protestassem em prantos, sugeriu: Então vocês levam na mão. Mas ficou com pena dos filhos, já tão cansados. Resolveu levar os cacarecos assim mesmo.
O novinho achado começou a pesar muito, esganava-se com o calor e falta de peito. Depois de quatro dias, pedindo comida e arrancho aos filhos de Deus, não tinham mais força para prosseguir. Chegaram a urna cascalheira da estrada que vai dar em Contendas do Sincorá. Aqui vamos ficar, disse. Instintivamente desconfiou estar perto da fazendinha vendida por seus pais, há mais de vinte safras de umbu, onde nascera e se criara. Viveria ali mesmo. Fosse corno fosse. Morrer de fome nos becos de Jequié, melhor perto de onde ouvira o galo cantar pela primeira vez.
Estavam agora descansando, à sombra do barranco alto de tirar cascalho. Seria o que Deus fizesse com ela. Abriu a trouxa: panos velhos, molambos; urna caçarola de alumínio furada onde fora o cabo; latinha com sementes; dois litros de óleo vazios, caixinha com o umbigo do caçula para ser enterrado em lugar decente; dois pentes banguelas; quatro bonecas faltando pernas, braços e só uma com a cabeça; três carrinhos de brinquedo sem rodas, e mais traquinadas que não sabia por que carregava. Sim, o mais importante: a imagem de Santa Teresa aproveitada de uma folhinha velha. Quem os visse, diria tratar-se de uma doida com os filhos, das que perambulam pelas estradas. O caçula e o achado puxavam as tetas em langanhos.
Quando Deus tarda, vem no caminho, pensou. Por sorte, encontrou, debaixo de urna pedra grande, urna cachorra parida de novo, ora batizada de Cholinha. Estava nas costelas, mas as tetas pojadas.
Certamente também fugira da rua, escorraçada, ou pela fome. A família agora cresceu. Além dos meninos, mais a nova amiga e suas crias. Todo mundo já passava de dez viventes. Os que mamavam ficaram de barriguinha aliviada. E os outros? O que iriam comer no dia seguinte, já que agora se deitaram no chão duro, alumiados por uma lua cansada, que também fugia com medo das estrelas, donas do céu. Ao amanhecer daquela primeira noite, bateu a lembrança. Perto dali, que era mata-de-cipó, começava a caatinga. Os umbuzeiros estariam em cachos. Carregou os meninos. As duas maiores, Berenice e Rosália, ficaram com os mais pequenos. Saiu confiante. Pouco com Deus é muito. Encontrou o farturão. Os meninos correram ao primeiro umbuzeiro e, na gulodice dos famintos, fartaram-se.
Pouco importava que as frutas do chão estivessem no meio de bosta de bois e cabras...
De seu romance "A Enxada", Littera Editores, 1996
Falecido em 2000, Euclides José Teixeira Neto faria 96 anos neste 11.11.2021. O texto inicial deste seu romance, dos últimos entre os vários escreveu, é de cruel atualidade.