Sabe com quem está falando?
Algumas vezes na vida passei por essa situação. A primeira aos 17 anos me alistando na FAB, pelos lados do Cambuci, na tal Quarta Zona Aérea. Penso não usam mais o termo "Zona"...
Na fila à espera, um PA (polícia da aeronáutica) se perfilou à minha frente e disse: -"Ô playboizinho, primeira aula. Pode ir pegando as pitucas aqui à frente da portaria e levar para a caixinha."
Não entendi a razão da ordem, perguntei, me respondeu: "estou disciplinando, ok?" e completou "vamos, acelerado!".
Respondi que não faria, eu era "civil" e estava apenas me apresentando para dispensa.
Novamente agora girando a metralhadora, detonou "aqui se mata por muito menos!" e gritou eu fizesse a tal faxina, finalizando "para saber com quem está falando".
Um superior dele verificando formava-se uma roda de outros da fila para ver no que daria, perguntou-me, duro, o que eu estava "aprontando", mas conhecia seus subordinados, nem ouviu a resposta. E pediu que todos se enfileirassem e o PA voltasse para seu posto.
Hoje, 45 anos depois, deitando em silêncio numa sala gélida em laboratório de análises clínicas, esperando um ultrassom de abdômen, a jovem médica entrou. Estendi a mão para cumprimentar, mas (higiene, maybe) ignorou e se apresentou:
"Sou a doutora Agnes, vou fazer o exame em você, hã, Hermógenes."
Do alto de seus talvez 25-26 anos, fitou-me com aquele desprezo dirige-se ao imaginado inferiorizado, com o fígado engordurado, dos não se cuida e atravanca o bom funcionamento do atendimento aos somente saudáveis.
"Mãos sobre a cabeça!"
Arrisquei uma piadinha quebra-gelo sussurrando "como na batida policial...".
Sem reação, gelada e com seguro nojo da carcaça do velho, apertou a tal sonda pelas banhas com dureza.
"Agora você vira para a direita!"
Obediente e lembrando também do milico de 45 anos atrás, fiz o ordenado.
Futucou mais um pouco, com uns apertões e comandos de "segura a respiração".
"Vira para esquerda!".
Tecladas duras na máquina, talvez anotando alguma coisa mais séria.
Encerrando, anotei por costume, foram exatos 6 minutos. Um pouco mais, admita-se, que aquele pediu o exame, um verdadeiro Pinochet da Medicina!
Esse em 4 minutos e 27 segundos fez o exame "externo", como disse.
Por fim, a jovem médica informou laconicamente a esteatose hepática era fato, grau moderado. Perguntei se algo mais, veio curto: "nada mais, tchau".
Olhei para a auxiliar, que me estendia um papel a limpar a geléia para deslizar melhor o sensor. "Rápida...", me escapou.
Porém repensando percebi o desejo da jovem, a se apresentar como "doutora", deixar bem claro para o velho: "nem vem com piadinhas de tiozão, assim já sabe com quem está falando!".
Pois é, somos assim, um tanto duros às vezes. Em tempos atuais mais ainda.
Lembrei, ao sair, da juíza em um julgamento do ex-presidente Lula, ao ele fazer algum comentário fora do padrão da audiência, a magistrada já esclarecer "vamos ter um problema se continuar assim!".
Afinal, nem ele sabia com quem estava falando...