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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

O que temos a comemorar ?

Por Erica Silva Teixeira, de Salvador

Quando pequena, tinha o hábito de acompanhar minha mãe ou meus avós ao supermercado porque, como qualquer criança, adorava a seção das "porcarias". A ida sempre era um evento: a angústia do meu dia se resumia a escolher entre chocolate branco, preto ou passatempo. Gulosa, como sempre, sequer esperava finalizar as compras. Os pacotes eram abertos sem qualquer pudor. Se seriam pagos, qual o problema em "adiantar meu baba"? A memória afetiva desses "passeios" sempre foi guardada com muito carinho.

Passados quase 15 anos, conversando com a secretária que trabalha em minha casa há mais de uma década, e recordando a infância, a bofetada: - "Kika, do mesmo jeito que eu rio horrores com suas histórias de infância, me lembro de Alecsando." (seu neto). Qualquer visita ao supermercado com ele, que tem só 7 anos, é precedida de uma extensa cartilha sobre como se portar no estabelecimento para NÃO SER ABORDADO/OFENDIDO POR UM SEGURANÇA por suspeita de furto ou "malandragem".

Detalhe: ele é negro. Sua avó também.

Tempos depois, presenciando uma reunião na UFBA de um coletivo feminino (com muitas negras presentes), ouvi alguns relatos relacionados à vida afetiva delas. A conclusão era basicamente a mesma: homens brancos - e aqui, a cor importa - não as assumiam, e muitos relatavam a dificuldade de apresentá-las às famílias. Os elogios feitos a elas, basicamente, se resumiam a qualitativos com conotação voluptuosa/sexual, beirando a agressividade. Com casos envolvendo agressão física e verbal, ainda mais graves.

Eu, que sempre fui faladeira, comecei a me silenciar para prestar atenção nas pequeninas observações feitas relacionadas ao cotidiano de um soteropolitano: ao entrar em um restaurante ou evento requintado, qual era a cor predominante de quem servia e de quem era servido ? Qual a cor de quem ocupava os cargos de liderança ? Qual a cor dos meus médicos, advogados ? As bofetadas não paravam.

Já mais velha, ao receber elogios, o discurso era sempre o mesmo: "o tom de sua pele é tão bonito! Tão branquinha, quase angelical, nem parece essa garota espevitada quando abre a boca ". É dizer: ser muito branca inferiria certa passividade e complacência ?

Conversando sobre os relacionamentos dos meus amigos homens, em grande maioria, o mesmo (- ÍSSIMO) discurso: - " não tenho preconceito, é que eu gosto de mulher branquinha ou, no máximo, bronzeada, sabe? " - " Não aguento ver uma loira " " é questão de ~~ gosto ~~ ". No mais, reforço a pergunta: com quantas pessoas NEGRAS vocês (nós) já se relacionaram ?

No ano passado, ganhei um livro de um sujeito por quem sou apaixonada tratando do conceito de " lugar de fala " (Djamila Ribeiro). Com ele, entendi que quem aqui vos fala, inclusive, apenas relata o racismo baseado no pouco do que vê. Nunca do que sente. Talvez, a pior pancada de todas.

São muitas coincidências, não ? Todas, invariavelmente, relacionadas ao tom de pele.

O racismo se traveste de diversas formas, inclusive em mensagens ocultas que sequer perceberíamos até sermos confrontados por quem sente - literalmente - na pele o preconceito.

É custoso pensar que, se eu consumisse drogas e, eventualmente, fosse flagrada com alguns quilos de maconha ou cocaína em meu veículo, jamais permaneceria presa. Essa também é mais uma das facetas que me mostram como meus privilégios me permitem certos " excessos ", jamais perdoados em uma pessoa " de cor ". Quando pobre, ainda pior. Digo e repito: não sou a destinatária principal da lei penal brasileira. Aqui, mais uma vez, minha cor me favorece.

No final das contas, a conclusão não poderia ser diferente: antes mesmo de confrontar o racismo, precisamos reconhecer que temos privilégios. Eles nos cegam de forma incalculável. E, ao pertencer a essa casta, devemos, diariamente, nos questionar sobre o que temos feito para diminuir o abismo que - ainda - separa pessoas pela sua cor. O apartheid social não acabou, mas tomou formas diferentes e demanda posturas ainda mais garantistas de todos nós.

Aos que criticam o discurso do " politicamente correto " e que, reiteradas vezes, fazem deboche alegando que " o mundo está " chato, se perguntem para quem a arma, no Brasil, está apontada.

Combater o preconceito é um dever moral para que evitemos a desumanidade. Ela está na moda.

Somos assim.

Temos "tradição" em racismo.

Comentários (clique para comentar)

Thomas Bussius - 22/11/2019 (11:11)

Brilhante!