Chulé e prisão...
Os hábitos de Arnold F. Ussehbier eram mundanos, nada a diferenciar dos outros humanos.
Acordava cedo, dormia cedo. Rotina de homens da terceira idade. Ainda trabalhava, a ajudar quem iniciava na profissão. Aos fins de semana almoços que ele mesmo gostava preparar. Seu desejo não declarado: um boteco para receber com boa comida, mas se distanciou diante da perspectiva de mais trabalho.
A vida confortável. Casamento morno, normal para o período. Todavia a perceber que a esposa depois de tantas décadas juntos, havia cansado das eternas promessas não cumpridas, da rotina enfadonha. A saúde seguia, com seus troços. Mas aprendera a ignorar um tanto as coisas da própria carcaça, comum nos mais velhos.
Amigos poucos, a rigor cada vez menos.
Por sua culpa exclusiva, admitia. Navegando em outra esfera da ideologia reinante na classe média da nação, seus posicionamentos contra a atualidade do bate-não-sopra-e-vá-se-foder-esquerdista-agora-somos-nós, não o encantava. E percebera que no estilo "1936-1945" as pessoas mais e mais se posicionavam à direita de generais chilenos...
Um seu hábito, diante de renitentes dores nas costas, decorrentes de evidentemente incurável artrose, era procurar deitar e alongar a zorra da coluna. Às vezes em sofá de tamanho adequado. E a levantar os pés, apoiando em livro sobre o descanso lateral, que permanecia ali, ninguém o recolhia.
Pés às vezes suados, malcheirosos. O livro: Papillon, de Henri Charièrre. Histórias de prisioneiros na Ilha do Diabo, nos anos 1920-30.
E seu deleite, quando certo dia uma senhora abominável, daquelas que alçam Donald Trump aos céus como salvador das Américas, em rara visita ocupou assento no dito sofá.
Fresca e orgulhosa, maquiagem de toneladas, a esforçar-se falar os plurais, tomar cafezinho de dedo esticado. Vendo o livro, perguntou ao dito cujo do que se tratava:
"História de um bandido francês enviado a uma prisão em colonia na Guiana, lugar terrível conhecido como Ilha do Diabo e, segundo ele, dos raros escapou de lá." informou o velho à "madama".
Que então o folheou como folheiam aqueles nunca nada lêem. E, com discreto dilatar das narinas, detonou:
" É incrível Arnold, sente-se até o cheiro da prisão no livro. Alguns livros são marcantes mesmo!"
Foi rir na cozinha...