Hermó

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro & Mello

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Artigo nº 59 - 18/11/2022

Os pobres Camelots do asfalto

“Às 10h, a pista expressa da marginal Tietê permanecia parcialmente interditada no sentido Ayrton Senna, 500 metros antes da ponte Freguesia do Ó (zona norte), devido a acidente ocorrido por volta das 6h20. De acordo com a CET, a colisão envolveu caminhão e uma moto. Uma pessoa morreu e outra ficou ferida.”

Deu hoje no jornal, 28.02.2008. Deixei meu mais novo na escola e retornando por estas avenidas, naqueles horários cheias, mas não travadas, surge o imenso congestionamento. A massa metálica parada, esfumaçando: raiva dos homens, combustível dos automóveis, caminhões e motos. Lentamente a andar, evidentemente nenhum auxílio dos órgão de trânsito. Costumeiro, mundo afora. A necessitar de policiais, enfermeiros ou médicos empregados pelo estado, é raro achar. Em média, com perdões pela maldade, surgem quando não são procurados; ou necessários.

Previsível, após uma hora e dez a passar pelo local de mais um acidente; e o fim de mais uma vida.

Não estava zangado com o congestionamento; após determinada idade percebo que contemplar o desenrolar do caos urbano e a absoluta incapacidade dos órgãos ditos públicos em organizar a questão (na verdade nem há interesse...), é até divertido. Tragicômico, talvez mais trágico que cômico.

Menos divertido, porém, verificar ali, sobre o asfalto da via, bloqueada em duas pistas quase como homenagem ao falecido, jazer jovem motoqueiro, coberto em parte por uns trapos (por que cobrem os recém-mortos?).

A grande cidade em lentíssimo cortejo motorizado rendia sua involuntária homenagem ao bravo defunto cavaleiro sobre duas rodas, vítima de algum dragão-caminhão. Pela posição contorcida dos pés, algo feio. Lembrei-me de João Bosco:

“Tá lá o corpo estendido no chão, em vez de um rosto uma foto de um gol...”

São três por dia, similar à média de pilotos de caça abatidos no final da Segunda Guerra. Outros 4 a 5 se tornam mutilados definitivos. 60-70 quedas e mais de 100 “encostamentos” diários.

Idade média entre 16 (sim, muitos não tem carta. E aqui entre nós, não vale muito mesmo qualquer curso.) e 35. Depois não há mais agilidade (e coragem) para os malabarismos, a entregar encomendas por este inferno afora.

Poucos entretanto se dizem inclinados a sair daquilo. A liberdade, até em conduzir a “cabrita”, como alguns denominam a motoca, é valiosa. Desrespeitar as regras, de trânsito e boa convivência, aparentemente impagável. A conta final quem apresenta é o acidente. Não em valores. Mas em vida ou mutilação. De duas rodas ligeiras para duas rodas, lentas, sob a cadeira.

Passei em cortejo, com os demais, feliz de ter alguma lata à minha volta. Pensei; neste mundo escrevemos tanto sobre os grandes homens, porém nada sobre os pequenos, bravos, lutadores do cotidiano. Quem seria o coitado após pastel e refrigerante como café-da-manhã, desembestou entre caminhões de 12 toneladas e num erro seu, ou d´outro, virou ele mesmo massa recheada? José, João, Wellington ou Maikol? De Brasilândia, São Mateus, São Miguel ou J. Ângela? O quê faria neste fim-de-semana, nessa, sem dúvida entre as cidades de trânsito horrível, ser certeiramente das campeãs?

Epitáfio vazio, pouco a dizer. Alguém anônimo recolherá o defunto, os cacos da motocicleta; com documentos vasculhados ligarão para mais uma mãe desesperada, atônita, cujas lágrimas sairão entre balbuciados, sufocados, suspiros de “mas ele guiava tão bem...”

Quem seria?

A defesa estritamente mecânica em redor da moto é nenhuma. Nos carros ainda temos algo à volta.

Sempre sobre rodas. Ligeiras sob a moto, lentas na maca.

Comentários

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Emília - 29/02/2008 (10:02)

Essa novidade chata já temos aqui em Salvador. Motos e mais motos surgindo do nada e raspando os carros. Um abuso!!!! Aliás, tá dando vontade de ir subindo país afora até chegar no Piauí prá ver se o progresso atrasa mais um pouco. O pior é que Salvador não nenhuma infra prá tanta gente que acha que aqui é o paraíso e tem vindo aos blocos morar. Os paulistas estão entre a maioria. Se eu fosse Presidente limitava o número de pessoas por cidade. Será que daria certo???? Bom fim de semana! (melhor ficar em casa).

Hermó - 29/02/2008 (07:02)

Tem razão, ficou meio estranha mesmo. Pensei no que faria o motoqueiro neste fim-de-semana, se não tivesse morrido, nesta que entre as cidades de trânsito horrível, está entre as campeãs.

Daniel - 28/02/2008 (20:02)

Desculpe-me a ignorância, mas não achei sentido nesta frase: O quê faria neste fim-de-semana, nessa, sem dúvida entre as cidades de trânsito horrível, ser certeiramente das campeãs? Acho que perdestes a linha de raciocínio. . . Mas é só uma opinião.

Hermógenes - 28/02/2008 (15:02)

Sociedade de classes. A lembrar que o voto de 1000 motoqueiros não equivale a um voto da Hilux preta. Portanto, acima da lei, o voto. Motos entre carros não pode dar certo. Fernando Henrique liberou, assim como proibiu o auto-atendimento em postos de gasolina, a garantir empregos. São 650.000 motoqueiros em São Paulo, morrendo 3 por dia são meros 0,00462%. Insignificante para quem liberou, para quem produz as motos, para quem usa os serviços. Mas homens não são só estatísticas: 1000 por ano mortos, mil famílias enlutadas. Somos assim.

Cornelia - 28/02/2008 (14:02)

De volta ao caótico trânsito paulista, fiquei admirada com a bravura e a coragem dos "motoqueiros"! Me assustava com as hordas que vinham entre os carros, desviando com incrível agilidade de espelhos ou incursões espontâneas dos motoristas na fila. E triste em assistir como são miseráveis, a ponto de terem que arriscar a vida tão obviamente, por alguns tostões...Engraçado, nunca os odiei, como muitos, sempre me encheu de tristeza a dura vida que levam. Desde que assisti o filme "Os motoqueiros" a minha solidariedade ficou maior ainda. Agora, estas Hillux pretas, diesel, com os vidros enegrecidos e quebra-mato, estas eu odeio, muito!