Hermó

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro & Mello

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Artigo nº 1028 - 18/11/2022

Nós, as rosas (e nossos espinhos)

Por Erica Silva Teixeira, de Salvador

Finalizando minha dissertação, estive pensando muito sobre a mulher, sobre o feminismo e sobre todos os ônus que carrego por amar política. Nisso, acabei me lembrando de um evento recente.

Dia desses, comendo e bebericando, conversava com um chegado sobre aborto. Ele, médico, conservador, pai, cartesiano e profundamente machista, de pronto, pôs-se a defender “a vida”. Minutos depois, ponderou e disse que o assunto era complexo, difícil e, filosoficamente falando, assumia não ter uma opinião concreta sobre o tema.

Nesse meio tempo - e quase sempre -, perguntei a ele: mas quando surge a vida para você, então ? Afinal, se formos utilizar o critério da vida, você, que sabe mais do que eu, pode responder com muito mais propriedade quando ela se inicia.

Ele calou. Olhou para o lado, meditou, refletiu e disse: “bem, considerando que o processo de nidação apenas forma um conglomerado de células, até um certo momento não há uma vida - sob o aspecto espiritual, talvez - propriamente dita … bem, não sei”.

Mais uma vez - e como sempre, em nossas infinitas conversas -, retruquei: “Veja, Abigobaldo, a discussão não envolve debates filosóficos. Utilizemos a sua régua e sejamos cartesianos, como você gosta.”

“O debate sobre aborto é político, sociológico e genuinamente evidencia o machismo estrutural. Aqui, a discussão é sobre a dominação do corpo feminino. Vocês, homens - e a sociedade - não aceitam que sejamos detentoras de plena autonomia sobre nossos corpos. A imposição de poder é simbólica e escancarada: se quem engravidasse fossem os homens, o aborto jamais seria proibido.”

Ele, mais uma vez, silenciou e disse: é um assunto muito difícil.

Complementei: "não é difícil, é apenas machista. A mulher tem um desafio existencial de lutar por autonomia. Somos adestradas e castradas desde o dia em que nascemos: não podemos ser feias, não podemos engordar, não podemos ser mais promíscuas que os homens, precisamos tomar anticoncepcional, não podemos envelhecer, ter cabelos brancos, não podemos ter mais desejo que os homens - ou falar escancaradamente sobre sexualidade -, não podemos ser mais bem sucedidas que os homens … em outras palavras, temos de viver às sombras - e sob a régua de um homem -. Percebe como a parametrização da nossa existência acaba sendo o que vocês desejam ? A proibição do aborto é só mais uma forma de controle sobre nós."

De pronto, a pauta tomou outro rumo. Homens possuem certa dificuldade em acolher argumentos mais contundentes que os seus. Talvez seja mais uma das facetas do machismo, intrinsecamente arraigado à sociedade em pleno século XXI.

Naturalmente, o problema se projeta no espaço político, que cria meios inexplicáveis de dificultar a participação da mulher na vida pública. Essa questão é tão densa, profunda e estrutural que permeia a própria existência humana, e mostra como nós, reles mortais, somos involuídos e temos um longo caminho a percorrer.

Cá estou, fazendo a minha parte.

Somos assim, humanos

O "dilema" biológico resolver-se-ia sendo a mulher quem decide sobre seu corpo. Exclusivamente.

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